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Carros, publicidade e mortes no trânsito


Por José Nachreiner Junior Publicado 03/11/2020 às 18h00
 Tempo de leitura estimado: 00:00

É aterrorizante o número de mortes causadas por acidentes de trânsito no mundo. E o que a publicidade tem a ver com isso? Leia a opinião de José Nachreiner Junior.

A revolução industrial foi uma complexa mudança na maneira como os seres humanos substituíram o trabalho artesanal, manufaturado, pelo trabalho assalariado com o uso de máquinas para a fabricação em série dos produtos, era o que acontecia na Europa nos séculos XVIII e XIX.

O nascimento da concepção moderna do automóvel pelas mãos do inventor Karl Benz, em 1.886, e dez anos depois, em 1896, a primeira projeção cinematográfica dos Irmãos Lumière, em Paris, com o filme A Chegada do Trem na Estação de Ciotat, pertencem, historicamente, ao início de duas indústrias promissoras do século XX: a indústria do automóvel e a indústria do cinema, ambas moldaram o comportamento dos seres humanos no planeta.

Certamente, outra indústria, a do tabaco, também se beneficiou dos processos de industrialização para atingir seu ápice de vendas até a década de 1980, quando as descobertas da medicina sobre as causas do câncer, principalmente de pulmões e garganta, vieram com força ao público, e praticamente todos os países do globo impuseram medidas restritivas na publicidade do produto.

Por toda minha infância, adolescência e fase adulta, ouvi, assisti e presenciei parentes e amigos fumantes perderem a vida para as tragadas, inclusive meu pai.

Não era nada difícil ligar a TV e assistir as propagandas da indústria do tabaco com monumental assertividade na tarefa de despertar a atenção, o interesse, o desejo e fazer com que espectadores se sentissem estimulados a comprar o próximo maço de cigarros:  “sabor naturalmente suave”; “gosto de levar vantagem em tudo”; “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”; “sabor de ação”; “o importante é ter charme”; “para quem sabe o que quer”; “vá ao sucesso”.

Uma coleção de slogans para mortes anunciadas.

As restrições à publicidade do tabaco se iniciaram com força no início da década de 1990, mas a Finlândia foi a primeira a adotar as medidas restritivas à publicidade do tabaco, em 1978, depois a Nova Zelândia, em 1990, a França e os EUA, em 1993, e o Brasil em 1996. No Brasil, a restrição total da publicidade tabagista chegou somente em 2000, com a proibição da propaganda em pôsteres, painéis, cartazes, mobiliário urbano, revistas, jornais, TV, rádio, outdoor e Internet. Porém, segundo a OMS, o cigarro ainda mata 8 milhões de pessoas no mundo, das quais, 7 milhões de maneira direta e 1,2 milhão de fumantes passivos.  No Brasil, o cigarro, infelizmente, ainda causa 156.217 mortes por ano.  Só que a restrição da publicidade da indústria do tabaco foi responsável direta por 40% de reduções de mortes no mundo, inclusive no Brasil.

A ausência de responsabilidade social da Indústria Automotiva

As pessoas compram carros, não fumam carros, mas é aterrorizante o número de mortes causadas por acidentes de trânsito no mundo. Segundo a OMS, as mortes no trânsito causam perdas anuais ao mundo estimadas em 518 bilhões de dólares. Isso quer dizer, de 1 a 3% do PIB de cada país.

São 1,9 milhões de mortos previstos até o final de 2020.  Só no Brasil, 30.371 mortos, isso sem contabilizar a grande quantidade de pessoas que sofrem sequelas permanentes por acidentes de trânsito.  Provavelmente nos acostumamos a não tomar conhecimento de números, de estatísticas.

Você não fica horrorizado em saber que antes de terminar de ler este artigo uma pessoa perdeu a vida no trânsito?

Isso mesmo, no Brasil, segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária (OBNSV), infelizmente, uma pessoa perde a vida a cada 15 minutos!

Voltemos ao início do texto, quando falávamos da revolução industrial, que nos trouxe os automóveis e o cinema.  Só para constar, durante praticamente toda a história do cinema assistimos filmes com nossos galãs fumantes. A indústria do tabaco era uma espécie de sócia do cinema, assim como a automotiva.

Imagine, um produto onde 007, o espião mais amado do cinema, entre uma e outra tragada de cigarro, acelerava o possante da vez. Em 1961, o ator Sean Connery acelerava um legítimo Sumbean Alpine, na sequência, Lincoln Continental, Toyota 2000GT, Ford Galaxie 500, Ford Mustang Match 1, Aston Martin DBS, BMW 750IL, entre outros modelos.

Os filmes do 007, quase anualmente, apresentavam um novo carro, super veloz, arrojado, viril e associado à empatia emprestada pela famosa série de Ian Fleming.

A geração mais velha viu o cinema promover um racha histórico com o ator James Dean (que morreu em acidente de trânsito) no filme Juventude Transviada, 1955, do diretor Nicholas Ray.  Dois anos antes, o diretor Laslo Benedek, lança o filme O Selvagem, com o ator Marlon Brando como um hábil motoqueiro que demonstra habilidades com as quais, hoje, o CTB poderia enquadrá-lo em uma porção de infrações de trânsito.

No final da década de 1960, houve momentos contra culturais nos EUA, Europa e Brasil, que pregavam mudanças de paradigmas antigos. Carros, motos e cigarros, porém, ficaram ilesos por décadas, matando pessoas aos milhares.

Para quem se recorda e gosta da Jovem Guarda, movimento musical protagonizado pelos cantores Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, na metade da década de 1960.

Lembro aqui a letra da canção “Rua Augusta a 120 por hora” do famoso do compositor e cantor Roni Cord. Nela, hoje, podemos enumerar infrações de trânsito a cada frase:

“Entrei na Rua Augusta a 120 por hora
Botei a turma toda do passeio prá fora
Fiz curva em duas rodas sem usar a buzina
Parei a quatro dedos da vitrina

Meu carro não tem breque, não tem luz, não tem buzina
Tem três carburadores, todos os três envenenados
Só para na subida quando acaba a gasolina
Só passa se tiver sinal fechado

Toquei a 130 com destino à cidade
No Anhangabaú eu botei mais velocidade
Com três pneus carecas derrapando na raia
Subi a galeria Prestes Maia”

Faça um teste de reflexão. Escolha um veículo de comunicação favorito (TV aberta, por assinatura, rádio, cinema, Internet) e preste atenção nas campanhas da indústria automotiva atual.  Longe de ser apenas uma crítica, faço aqui menção da minha juventude que, por falta de discernimento crítico, em relação as mortes causadas por acidentes de trânsito, assistia propaganda de lançamentos de automóveis com o desejo de comprar uma “supermáquina”.

Em qualquer curso superior de Comunicação ou Administração nas disciplinas de marketing, aprendemos a fórmula da AIDA para estimular a venda de produtos:  atenção, interesse, desejo e ação.

Então vamos ao intervalo do Jornal Nacional para assistir ao comercial da indústria Caoa Cherry gabar-se do produto turbo mais veloz do mercado. Com a incrível performance de se deslocar 1000 metros em 4 segundos.  Ela não é a grande culpada, ela faz parte de uma indústria que não sofreu as consequências da restrição de publicidade, como a do tabaco.  Todas as marcas, desde a época do videotape, na década de 1960, se vangloriam dos modelos cada vez mais velozes, arrojados e viris.  Acabo de me lembrar da franquia Velozes & Furiosos, a qual o ator protagonista Paul Walker pertencia e morreu, em 2013, precocemente, aos 40 anos, ao colidir sua veloz Porsche em árvores.

As pessoas não fumam carros, muitas delas têm o hábito de acender cigarros, fumar e dirigir, também causando acidentes.

As pessoas não fumam carros, mas o trânsito mata e mata muito.

Diferente das causas cancerígenas do cigarro, as mortes no trânsito são consequências de dezenas de motivos. Entre eles estão: desatenção, ingestão de álcool e drogas e, principalmente, por excesso de velocidade.

Não acredito que anunciar lançamentos de carros com responsabilidade social tiraria o sono dos vendedores, pelos consumidores ávidos pelo próximo carro mais potente.

O fenômeno das redes sociais, onde jovens postam todo tipo de infração por alta velocidade, com exibições de carros e motos potentes, colecionando likes, e rentabilização de canais ligados ao YouTube estimulam milhares de jovens a fazerem a mesma coisa.

A publicidade responsável, que traduz a segurança do automóvel juntamente com a direção responsável, conforto e diferenciais de consumo de combustível, já bastaria para estimular a venda de seus produtos.  A propaganda que vende o excesso de velocidade, que anuncia o turbo do ano e que o automóvel é capaz de percorrer um quilômetro em poucos segundos, precisa ser banida. A educação para o trânsito precisa estar na escola, na imprensa, na indústria automotiva, nos meios de comunicação, na formação de novos condutores.

Somente um esforço unânime da sociedade brasileira poderá garantir uma nova década sem mortes no trânsito ou com o mínimo de acidentes.

 

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