Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nossos sites, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao acessar o Portal do Trânsito, você concorda com o uso dessa tecnologia. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.

O dia que não terminou


Por Márcia Pontes Publicado 08/03/2016 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h29
 Tempo de leitura estimado: 00:00
Autopreservação no trânsitoComo explicar a morte para nós mesmos e para todos que são afetados por ela independente da idade ou qualquer outra coisa?

Antes de começar a escrever, peço licença às vítimas e familiares de vítimas de acidentes de trânsito. Todo momento de dor e sofrimento causado em consequência de um acidente de trânsito é precedido de um momento de alegria intensa. Pela alegria de quem viaja com a família, pela alegria de voltar do trabalho depois de uma rotina intensa, pela felicidade de quem dirige, caminha ou pedala para encontrar alguém que ama. Todo acidente de trânsito perpassa dimensões: vira mau pressentimento, coração apertado e sensação de sufocamento, de agonia. Vira telefonema inesperado, fora de hora, um trovão quebrando o silêncio na madrugada e que também põe fim ao sentimento de paz por muito tempo ou por uma vida inteira.

Primeiro se ouvem risos, música tocando no carro. Em alguns casos, é o silêncio que é rompido por um “estouro” como comumente se define o som da “batida”, da colisão. Em seguida vêm os gritos das vítimas ou de transeuntes. Depois sirenes. Choro e desespero vêm acompanhados da compaixão de estranhos e desespero dos familiares.

A vítima começa a ouvir o som da própria respiração. A produção de catecolaminas e outras substâncias e neurotransmissores meio que anestesia ou diminui a sensação de dor em caso de arrancamentos de membros e dilacerações. É o que no senso comum e diz como “o corpo ainda está quente e não sente”.

Vítimas de acidentes de trânsito em situação de extrema gravidade no momento do acidente, enquanto aguardam socorro ou são socorridas, relatam a visão embaçada e só identificam as luzes vermelhas e azuis das viaturas de socorro. Ouvem muitas vozes, gritos e choro, no entanto, sem diferenciar de quem seja. Relatam confusão mental, tontura, como se tudo fosse vago e distante. O trajeto até o hospital parece mais uma viagem em túnel sem luz, imenso e cheio de ecos que nunca termina. Tanta gente à volta, tantas vozes e comandos de socorro que não aplacam o sentimento de estar perdido, só e abandonado.

O desespero de quem já foi acordado no meio da noite por um telefonema informando sobre o acidente e tendo sua presença requisitada no hospital ou no necrotério é a morte que se instala em vida. Da mesma forma, ter a rotina desfeita a qualquer hora do dia dessa forma, é algo que desnorteia.

A alegria, o silêncio, são quebrados pelo som da colisão. Ali morre um pouco de cada um em um segundo que se transforma em longas horas de sofrimento, dor, agonia e desespero para todos.

Quando do acidente resulta a morte, os familiares não acreditam que estejam diante do pai, do filho, do irmão, do amigo morto. Não entendem como aquela e outras vidas são interrompidas de uma forma tão violenta, tampouco a rapidez com que eles são roubados de nós.

O pior momento é quando a urna se abre e quando é fechada. O pior momento é ter que deixar a pessoa que mais ama ali, entregue à terra, entregue ao pó, e ter de voltar para casa de mãos e olhos vazios para tentar seguir a vida sem eles.

O que dizer para um filho órfão de pai e de mãe morto em acidente de trânsito? Como dizer para o avô, avó, pai ou mãe idoso, já debilitado pelas consequências da idade, que a ordem das coisas se inverteu e que não são os mais jovens que enterram os mais velhos?  Como explicar a morte para nós mesmos e para todos que são afetados por ela independente da idade ou qualquer outra coisa?

Esses e outros tipos de mortes, inclusive a social, a morte da independência para as atividades da vida diária ou até mesmo a morte da mobilidade e neurovegetativa, pouco são abordadas ou explicadas em campanhas educativas de trânsito. A dor dos sobreviventes e das famílias nunca aparece, nunca tem visibilidade.

E o pior disso tudo é que qualquer um de nós pode ser a próxima vítima de si mesmo ou de outras pessoas que, por um segundo, deixam de fazer o que deveriam no trânsito.

Sei que este texto atinge em cheio quem não gostaríamos de atingir: as vítimas e seus familiares, já atingidos duramente pelas consequências dos acidentes de trânsito.

Quem dera, tivessem o poder de impactar pela palavra, pela emoção e pelo alerta, e ativassem um quê de autocuidados em cada um. Porque para muitos, o dia não vai terminar.

Receba as mais lidas da semana por e-mail

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *