Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nossos sites, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao acessar o Portal do Trânsito, você concorda com o uso dessa tecnologia. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.

Fé em Deus, pé na tábua e a ojeriza a obedecer às leis de trânsito


Por Luiz Flávio Gomes Publicado 14/02/2013 às 02h00
 Tempo de leitura estimado: 00:00

A estrita observância da fórmula EEFPP (Educação, Engenharia, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição) fez com que a Europa diminuísse em 42% o número de mortes entre 1999-2010. De 2000 a 2010, no Brasil, as mortes no trânsito aumentaram 4% ano. Muitos fatores explicam essa abismal diferença. Dentre eles encontra-se o comportamental, umbilicalmente ligado à educação (e às tradições).

Se o eixo da educação é de reconhecida relevância para toda política preventiva de acidentes no trânsito em todos os países do mundo, no Brasil, ela ganha contornos superlativamente épicos, em razão (a) da nossa cultura aristocrática (hierarquizada), em que os superiores se sentem no direito de ter privilégios frente ao sistema legal, (b) da nossa democracia pouco igualitária (não respeitamos as pessoas desconhecidas, ou seja, os outros, que deveriam ser tratado com igualdade) e (c) da nossa fé em Deus, que nos protegeria permanentemente dos acidentes e das mortes (veja DaMatta et alii: 2010, p. 11 e ss.).

Todas as pesquisas revelam que os brasileiros concordam que os motoristas irresponsáveis devem ser severamente punidos (daí a aprovação geral a todas as iniciativas legislativas nesse sentido). Ao mesmo tempo (e paradoxalmente) praticamente todos também afirmam que “ninguém obedece às regras de trânsito” (DaMatta et alii: 2010, p. 121).

Há exagero nessa percepção social, de qualquer modo, parece certo que o radicalismo repressivo, bastante afinado com o populismo penal, não se coaduna com o realismo inerente à nossa cultura de ojeriza à obediência às leis.

A nossa cultura escravagista e aristocrática (que vem do tempo do império: até 1888 a escravidão estava legalizada; até 1889 não tínhamos a República), absurdamente, ensina que observar as leis é coisa de idiota, de gente tola, de gente inferior, de gente que não tem relações sociais, que não tem capital cultural e/ou econômico etc. Essa convicção burguesa bandoleira e irresponsável se confirma no dia-a-dia, visto que quem tem capital familiar (nome), social e econômico (quem é poderoso) acaba mesmo, no trânsito, se valendo do jeitinho (amizade, corrupção etc.) ou do Você sabe com quem está falando? (DaMatta et alii: 2010, p. 122).

Há uma profundidade histórica e sociológica incomensurável nessa nossa ojeriza a obedecer às leis igualitariamente. Isso se reforça com a crença na impunidade (tal como ocorreu com o jogador Edmundo), que é generalizada entre os da camada de cima, os superiores, que se julgam, dentro do exercício das suas vulgaridades e espontaneidades, no direito de terem comportamentos diferenciados (da massa, da ralé, dos de baixo) nas ruas e nas estradas (ou seja: há uma espécie de direito hereditário a ter tratamento desigual e privilegiado também no espaço público, que é de todos).

Somos bons na retórica repressiva (todos queremos mais rigor penal, consoante a cartilha do populismo penal), mas péssimos em termos de superação da nossa vulgaridade e pouca noção de cidadania, marcada pela generalizada desobediência às leis e às regras igualitárias (sobretudo as que dizem respeito à segurança viária), que deveriam ter o mesmo valor para todos.

Enquanto não internalizarmos (por meio de uma hercúlea reeducação) que, nas ruas e nas estradas, todos somos iguais (o sinal vermelho é vermelho para todo mundo) e que os outros (motorizados ou não) merecem tanto respeito quanto queremos para nós, vamos continuar contabilizando um macabro massacre coletivo. Nós não teríamos que ser obedientes à lei somente quando presente uma autoridade do trânsito ou quando estamos na iminência de uma punição. Numa sociedade hierarquizada e acostumada ao desmando, à bandalheira, à impunidade, ao jeitinho, às vulgaridades do homem moderno, a educação no trânsito se apresenta como uma tarefa quase que impossível (mas que deve ser tentada).

A convicção sociológica de que o brasileiro é cordial (Buarque de Holanda, Gilberto Freyre etc.) só tem validade quando se trata de um conhecido (ou amigo, ou familiar). Fora disso, o brasileiro é extremamente agressivo e violento (20º país mais violento nos homicídios e 3º do mundo nas mortes no trânsito), ou seja, fora da sua casa (nas ruas e nas estradas), é um “animal muito pouco domesticado”, uma besta primitiva (Nietzsche), posto que desumaniza e impessoaliza tudo e todos, apresentando um déficit ético absurdo, fundado no desrespeito aos demais, na desconsideração da dignidade humana etc.

Beber e dirigir, portanto, nesse contexto histórico e sociológico, constitui um direito fundado na vulgaridade pós-moderna dos superiores ou na fé que muitos depositam em Deus, que os protegeria das imprudências, dos acidentes, dos malfeitos, das barbaridades e das mortes. Qualquer programa educativo no trânsito que não leve em conta essas peculiaridades culturais, históricas, sociológicas e religiosas dos brasileiros tende a naufragar, porque estará esquecendo nossas raízes profundas, que formataram uma personalidade, nos ambientes públicos, dotada de uma vulgaridade ímpar e deplorável.

Receba as mais lidas da semana por e-mail

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *