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Formação de condutores: uma indústria milionária de pregos tortos


Por Márcia Pontes Publicado 09/09/2014 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h35
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Formação de condutoresA analogia é da presidência do Observatório Nacional de Segurança Viária diante de uma formação de condutores capenga, ultrapassada e que precisa ser revista urgentemente. Mas, também se aplica perfeitamente ao fenômeno da indústria milionária que lucra com os condutores mal formados. Funciona assim: primeiro, abrimos uma fábrica de pregos tortos, depois inventamos e vendemos máquinas de desentortar pregos. Assim, todo mundo sai lucrando com o retrabalho e o desserviço em uma espécie de democracia às avessas.

Já venho dizendo e não é de hoje que a formação de condutores no país tem que ser vista e revista em sua complexidade. Embora a visibilidade maior dos altos índices de reprovação nos testes de direção esteja no candidato, é o sistema como um todo está podre até a raiz, produzindo frutos amargos.

O pensamento linear é assim: o aluno reprovou porque ficou nervoso ou porque é teimoso e não aceita comprar mais aulas no CFC, aí tem que reprovar mesmo 700 vezes para aprender a deixar de ser pão duro.

O aluno reclama que a maioria dos instrutores não ensina direito, que é carrancudo, que passa a maior parte do tempo no celular, que grita com ele, diz que tal pessoa não vai aprender porque não tem dom para ser motorista, ou porque é muito velha, porque não sabe a diferença entre direita e esquerda, ou qualquer outro absurdo. Dia desses uma cena indignou quem passava: uma aluna ao volante do veículo de aprendizagem bateu atrás de outro veículo; o instrutor tratou a aluna, uma senhora, aos berros, xingando, abrindo os braços, ridicularizando-a em via pública. Detalhe: saiu do carro com o celular na mão e a tela da rede social aberta.

Aqueles que fazem dos candidatos um carbono para suas desesperanças e desencantos na profissão, reclamam dos baixos salários, da falta de valorização, da ganância de muitos donos de CFC. Reclamam que trabalham muitas horas por dia, sentados, expostos a problemas de saúde como varizes, doenças da próstata, queimaduras de sol em veículos sem ar condicionado, e acabam perdendo a paciência com os candidatos.

Por outro lado, muitos diretores de ensino não acompanham, não orientam e não avaliam a sua equipe de instrutores. Muitos, fazem a maior parte do tempo trabalhos burocráticos e há até anúncios na internet de diretores de ensino que se oferecem para assinar – somente para assinar – documentos para outros CFC’s “por um bom preço”.

Os Procons estão cheios de denúncias de CFC’s que cobram preços e taxas abusivas para todo o tipo de serviço, por cobrarem por certa quantidade de aulas práticas e ministrarem menos, e outros abusos.

Muitos Detrans, por sua vez, deixam a entender que usam a surdez seletiva para as denúncias e queixas dos candidatos e dos próprios profissionais dos CFC’s. Mantém-se nas auditorias administrativas, burocráticas, e ao não cumprirem com a sua parte em legislação de oferecer apoio pedagógico às autoescolas, assinam como co-autores do adestramento que prevalece em vez de uma aprendizagem significativa da direção veicular.

Lá em cima, muitas resoluções de textos vagos, fazem com que Detrans de diferentes estados criem suas portarias para estabelecer regras específicas para o exame de direção, por exemplo. E aí, o que reprova o candidato em um estado não reprova no outro, aplicando um golpe duro na espinha dorsal da formação de condutores no país.

Se, por um lado, os altos índices de reprovação nos testes de direção denunciam uma vergonha nacional em um país em que morrem no trânsito bem mais de 60 mil pessoas por ano, que fabrica uma legião de mais de meio milhão de sequelados e que desperdiça mais de R$ 40 bilhões em custos, tem muita gente lucrando alto com essa fábrica de pregos tortos. E eles sabem quem são.

Está certo que 20 horas práticas para dirigir é pouco, mas do jeito que se instrui e se adestra os futuros motoristas, podem aumentar para 200 aulas que continuarão saindo sem condições de dirigir seus carros com segurança em via pública. E não estou falando aqui de prática e de perícia, porque isso, obviamente vem com o ato de dirigir após habilitado. Mas, se o futuro motorista só aprende que dirigir é colocar o veículo para andar em linha reta ou a fazer manobras se orientando por pontinhos coloridos em partes específicas do veículo, ignorando que tudo no trânsito não é padronizado como nos pátios de provas, aí só conseguirá reproduzir o adestramento para passar na prova.

Para suprir a demanda dessa fábrica de pregos tortos, fabricam-se os desentortadores de pregos. Já viram como crescem as empresas de aulas para habilitados? O que migra de instrutores para esse ramo ou trabalham paralelo? Quantos psicólogos saem dos consultórios para atuar no mercado do suposto medo de dirigir?

Fabricam-se os que vendem produtos milagrosos que prometem tirar o medo de dirigir em questão de dias, os vendedores de kits, videoaulas, cartilhas e de tantas outras ferramentas que movimentam milhões que saem do bolso de quem deveria ter sido formado nos CFC’s. Fabricam-se também muitos charlatões e estelionatários que chegam a cobrar cerca de R$ 20 mil reais para “tirar o medo de dirigir” em passes de mágica e sessões milagreiras de atendimento.

Me atenho às questões pedagógicas do ensino e aprendizagem significativa da direção veicular porque esta é minha área de pesquisa há anos, por meio de intercâmbios internacionais, da formação superior em Educação e em Segurança no Trânsito e em estudos diários. Mas, enquanto prevalecer entre os corporativistas de todas as pontas do sistema de formação de condutores o discurso de que não se pode generalizar, de que é exagero, de que o culpado é exclusivamente este ou aquele, continuaremos a permitir que o joio, que o câncer continue instalado e se proliferando.

Continuaremos, cada qual, no âmbito de nossas (ir)responsabilidades a sermos cúmplices e co-autores da fábrica de pregos tortos. Muitos, esperando a sua vez de também lucrar com algum tipo de ferramenta para entortar e desentortar pregos.

De todos os que citei e fazem parte no processo de formação de condutores, são aqueles que lutam contra a fábrica de pregos tortos o fio de esperança de uma sociedade inteira.

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