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Sobre cláusulas pétreas que fazem sombra à sensação de impunidade


Por Márcia Pontes Publicado 04/09/2014 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h35
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Impunidade no trânsitoQuem aí lembra do caso do jogador Edmundo, que depois de se envolver em um grave acidente que deixou três mortos e três feridos, continuava dirigindo com mais de 219 pontos na CNH e que quase 16 nos depois teve o processo penal extinto por prescrição?

Quem ainda não leu alguma notícia de condutor que foi flagrado dirigindo embriagado com mais de 300 pontos na CNH e já era reincidente? Agora vem a notícia de que a Dona Justa determinou que a suspensão do direito de dirigir fosse revogado para infrações gravíssimas, que antes, só de serem flagradas, determinavam a suspensão.

Como educadora de trânsito, pessoa e profissional que luta dia a dia para tentar tornar o mundo e o trânsito um lugar menos violento, a impressão que tenho é que limparam a boca com o artigo 261 do CTB, alterado pela Lei 12.547, de 14 de dezembro de 2011 porque condutores que tiveram o “direito” de dirigir suspenso começaram a espernear. E o pedido veio da própria promotoria alegando uma chuvarada de mandados de segurança dos condutores infratores para continuarem dirigindo. Durma-se agora com um barulho desses!

Desde a entrada em vigor do CTB os novos motoristas aprenderam que se atingissem 20 pontos na CNH o direito de dirigir era suspenso. Também aprenderam que motoristas flagrados bêbados ao volante poderiam ter a CNH suspensa ou cassada imediatamente. Ainda que pudessem recorrer da decisão. Agora não! E o Detran de São Paulo já avisou que vai parar de fazer os bloqueios administrativos das CNHs de condutores que atingem 20 pontos, mas que não tiveram seus casos considerados “trânsito em julgado”.

Qualquer condutor que fosse flagrado cometendo algumas dessas infrações que, por si só, suspenderiam o direito de dirigir, agora, com a decisão da Justiça, só podem ter suspenso o “direito” de dirigir, depois que todos os recursos que ficam tramitando por longos anos na esfera administrativa for julgado. É o direito constitucional da ampla defesa e do contraditório. Mesmo sabendo que muitos vão as ruas e continuarão reincidindo e colocando a vida dos outros em risco.

Em minha opinião, dirigir não é direito: é uma concessão do estado a quem comprova, pela documentação e pela conduta, que pode dirigir veículo automotor em via pública sem ameaçar a segurança e a vida das outras pessoas. E aí, a sensação de impunidade tasca a render solta! Opa! É direito constitucional! Esqueci que as leis brasileiras são ótimas, só que mal aplicadas, como muitos dizem. Então, atentemos para as seguintes infrações gravíssimas:

Dirigir alcoolizado (art. 165). Suspensão de 12 meses. Quantos mataram bêbados ao volante e continuam dirigindo? Efetuar manobra perigosa (art. 175); dirigir moto sem capacete (art. 244, I); transportar, na moto, passageiro sem o capacete de segurança (art. 244, II); dirigir moto fazendo malabarismo ou equilibrando-se apenas em uma roda (art. 244, III).

Dirigir moto com os faróis apagados (art. 244, IV): quantos acidentes e mortes foram provocadas por esta conduta infratora em condições adversas de clima? Transportar, na moto, criança menor de sete anos (art. 244, V): lembrando que no Brasil, em média, 7 mil crianças com menos de 7 anos ficam inválidas por ano em acidentes. Muitas, porque pais descabeçados transportam bebês em motos.

Transpor bloqueio policial (art. 210): quem deve teme? Estava fazendo o quê de errado para furar bloqueio policial? Dirigir ameaçando pedestres (art. 170); dirigir em velocidade superior em mais de 50% do limite permitido (art. 218, III): quantas notícias temos por dia de motoristas pisando até o talo no acelerador, atingindo velocidades absurdas, se matando, se ferindo e matando e ferindo outras pessoas?

Disputar corrida por espírito de emulação (art. 173); participar de competição esportiva em via pública sem permissão da respectiva autoridade de trânsito (art. 174); omitir-se de socorrer vítima (art. 176).

Ora, como em qualquer punição, cabe recurso para o motorista. Primeiro na JARI, depois no CETRAN e na Justiça comum. Mas, e a materialidade da infração e do crime? Não conta?

Qual será o posicionamento das Cortes agora no país, se há jurisprudências que negam pleito de antecipação de tutela, em ação movida por motoristas, que buscavam fugir de sanções aplicadas após ter atingido 20 pontos em seu prontuário por conta de infrações de trânsito?

Se sabe-se que além de ganhar tempo, de continuar dirigindo mesmo depois de cometer infrações gravíssimas, depois de matar no trânsito, ainda assim o infrator pode ser beneficiado com a prescrição do processo, o problema será de ordem constitucional ou de morosidade burocrática no julgamento dos processos tanto nas esferas administrativas quanto judiciais? Será que vale o preço da sensação de impunidade?

Leis brandas demais para julgar infrações e crimes de trânsito e de toda ordem que só fazem aumentar a sensação de impunidade e de desamparo entre a população. Parece que no Brasil se faz leis pensando em como não cumpri-las, em arrumar brechas, em protelar decisões. Diga-se que vivemos em pleno século 21 com códigos da década de 1940 e mais uma penca de infrações que ainda não foram regulamentadas no próprio CTB, 16 anos depois de ter entrado em vigor. Os magistrados também estão reféns ao ter de aplicar leis brandas?

Quanto aos senhores que escrevem as leis no país, resta o asco de quem faz bandalha com as leis de trânsito, prometendo isso, prometendo aquilo em período eleitoral, mas quando estão no poder não mexem uma palha para mudar essas leis brandas demais que só protegem motoristas infratores e aumentam a crença na impunidade.

Isso me faz lembrar Monsieur De Gaulle. Se estivesse vivo, diria a mesma coisa para um país em que morrem no trânsito mais de 60 mil pessoas por ano, contabiliza mais de meio milhão de mutilados, sequelados e inválidos permanentes e gasta mais de R$ 42 milhões só com as vítimas de acidentes de trânsito. Muitas, mortas por motoristas que “acham” que dirigir é um direito irrevogável, protegido e amparado por toda sorte (ou azar) de infinitos recursos.

No país em que parece que não existe motorista inapto para dirigir, tomara que não surjam decisões parecidas para soltar quem está atrás das grades porque os recursos ainda não foram julgados.

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