
Alysson Coimbra*
Imagine a cena: Um jovem de 18 anos, primeira vez ao volante, fazendo baliza em um veículo particular. Uma distração, um erro de cálculo nas aulas de direção e… batida. Prejuízo de R$ 15 mil. O seguro se recusa a pagar. Afinal, quem estava ao volante não tinha habilitação. Quem paga a conta? Você. Essa não é uma hipótese remota. É a nova realidade do treinamento de condutores no Brasil.
A mudança que ninguém te contou
Nos últimos meses, uma alteração profunda passou quase despercebida pela maioria dos brasileiros: agora é permitido que instrutores autônomos usem seus veículos particulares para ensinar pessoas que ainda não possuem CNH. Parece moderno? Flexível? Econômico?
Olhe mais de perto.
O problema bilionário escondido nas entrelinhas
A esmagadora maioria das apólices de seguro automotivo exclui cobertura quando o veículo é conduzido por motorista não habilitado. Traduzindo: em caso de acidente durante a aula, a seguradora tem o direito legal de negar o pagamento. Completamente. Legitimamente.
O prejuízo vai direto para o bolso do instrutor. E, consequentemente, será repassado para você ou seu filho. Mas fica pior.
Quando o acidente não é só “uma batidinha”
E se o acidente envolver terceiros? E se houver vítimas? Sem cobertura securitária adequada, o proprietário do veículo e o instrutor respondem pessoalmente, com seu patrimônio, sua casa, seus bens, por danos materiais, morais e até criminais.
As autoescolas tradicionais sempre operaram com veículos adaptados, identificados e seguros específicos exatamente porque o risco é mensurável e alto. Agora, esse risco foi silenciosamente transferido para pessoas físicas que talvez nem compreendam a dimensão da responsabilidade que assumiram.
O timing mais perigoso possível
E adivinha quando essa mudança está sendo intensificada? Agora, em dezembro. O mês que concentra maior fluxo de veículos nas estradas, viagens longas de férias e festas, maior consumo de álcool, condutores cansados e picos históricos de acidentes.
Introduzir condutores inexperientes, em veículos sem proteção adequada, nesse cenário é como acender um fósforo perto de um barril de pólvora.
A lacuna jurídica que protege ninguém
Aqui está a parte mais assustadora. Não existe marco regulatório claro. Ninguém definiu quais seguros são obrigatórios, quais coberturas mínimas devem existir, como se dará a responsabilização e como será a proteção de terceiros inocentes.
Essa ausência normativa não é apenas tecnicamente problemática. Ela coloca em risco real a vida e o patrimônio de milhares de famílias brasileiras.
A mensagem perigosa que estamos enviando
Quando simplificamos excessivamente o processo de habilitação, quando reduzimos exigências, quando aceleramos a formação, enviamos uma mensagem à sociedade: dirigir não é tão difícil assim. Mas o trânsito brasileiro conta outra história. Todos os anos, mais de 30 mil mortes, centenas de milhares de feridos e bilhões em prejuízos. O trânsito não perdoa improvisação.
Uma questão de saúde pública
Não se trata apenas de burocracia ou disputa entre setores. Trata-se de saúde pública. Cada condutor mal preparado que entra nas ruas representa um risco multiplicado para toda a sociedade. Hospitais públicos já sobrecarregados recebem diariamente vítimas de acidentes de trânsito,famílias são destruídas, jovens perdem a vida ou ficam com sequelas permanentes.
O Sistema Único de Saúde gasta bilhões com tratamentos que poderiam ser evitados com formação adequada de condutores. A comunidade médica tem alertado há anos: acidentes de trânsito são uma epidemia evitável. E qualquer política pública que fragilize a formação de condutores caminha na contramão da prevenção.
Os estados começam a reagir
A gravidade da situação não passou despercebida por quem está na linha de frente da implementação dessas mudanças. Na última sexta-feira, o Conselho Estadual de Trânsito de São Paulo (Cetran-SP) encaminhou à Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) o Ofício nº 50/2025, demonstrando toda a impossibilidade dos estados da federação aplicarem de maneira imediata essas medidas.
O documento é técnico e contundente. Aponta falhas jurídicas e administrativas graves na nova regulamentação. Mais do que isso: alerta que a aplicação precipitada dessas mudanças pode representar complicações do ponto de vista da Lei de Responsabilidade Fiscal para os estados e exposição inaceitável em termos de responsabilidade civil.
Quando um Conselho Estadual de Trânsito, órgão técnico e especializado, manifesta preocupação dessa magnitude, não se trata de corporativismo ou resistência à inovação. Trata-se de responsabilidade institucional.
Mais que um debate técnico: um alerta urgente
Não se trata de resistência à mudança. Trata-se de responsabilidade coletiva. Não se constrói segurança viária com portarias apressadas, atos infralegais e experimentação na vida real. É construída com técnica, dados, diálogo e prudência.
Cada decisão administrativa mal planejada nessa área tem nome, sobrenome e família. Tem jovens com a vida pela frente, tem pais voltando de viagem, tem crianças no banco de trás. As estatísticas de trânsito não são apenas números, são vidas.
E quando transformamos a formação de condutores em um experimento de laboratório, especialmente no período mais crítico do ano, não estamos apenas arriscando prejuízos financeiros. Estamos colocando vidas em jogo.
A pergunta que fica
Com um Conselho Estadual de Trânsito apontando impossibilidades jurídicas e administrativas, com seguradoras negando cobertura, com o período mais perigoso do ano em curso e com a comunidade médica alertando sobre os impactos na saúde pública, quantos acidentes evitáveis, quantas famílias destruídas e quantos processos judiciais intermináveis serão necessários antes que essa política seja revista? Não espere virar estatística para agir.
Alysson Coimbra é Médico Especialista em Trânsito e Coordenador Nacional da Mobilização de Médicos e Psicólogos do Tráfego – @alyssondotransito