
A proposta do Ministério dos Transportes de flexibilizar o processo de formação de condutores no Brasil, anunciada pelo ministro Renan Filho em entrevista à Folha de S.Paulo, continua gerando forte repercussão. Entre as vozes críticas está a da Comissão de Direito de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana da OAB Paraná. O órgão elaborou um parecer jurídico assinado pelos advogados Douglas Bienert e Gustavo Pereira Coelho Martins.
Conforme eles, a medida, que prevê tornar facultativa a formação em autoescolas e permitir que instrutores autônomos ministrem aulas práticas com veículos particulares, “pode trazer impactos socioeconômicos graves, além de comprometer a segurança no trânsito”.
O que prevê a proposta do Ministério dos Transportes
Entre os pontos ventilados pelo Ministério dos Transportes e pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) estão:
- facultatividade dos Centros de Formação de Condutores (CFCs);
- possibilidade de aulas práticas em veículos particulares, sem pedais de duplo comando;
- treinamento em pátios privados, como igrejas ou condomínios;
- substituição das aulas teóricas presenciais ou on-line síncronas por vídeos gravados (EAD assíncrono);
- formação de instrutores autônomos também por EAD, sem estágio prático.
A justificativa é a redução de custos. O ministro argumenta que o processo de habilitação no Brasil é caro e burocrático, o que contribui para que milhões de motociclistas circulem sem CNH.
OAB-PR critica falta de estudos técnicos
Para os advogados, a proposta foi anunciada sem o devido respaldo técnico das Câmaras Temáticas do Contran, responsáveis por analisar e embasar decisões de alto impacto.
“Embora nem todas as alterações passem obrigatoriamente pelas Câmaras Temáticas, é recomendável que propostas de grande complexidade técnica ou impacto socioeconômico sejam avaliadas previamente pelos especialistas, como forma de evitar a politização das decisões”, destacam Bienert e Martins.
Eles lembram ainda que a Resolução 820/2021 do Contran determina a necessidade de análise de impacto regulatório e consulta pública mínima de 30 dias antes de alterações significativas.
Descompasso com diretrizes internacionais
O parecer aponta que a flexibilização segue na contramão das recomendações internacionais. A ONU e a OMS têm orientado países a investir em educação rigorosa e continuada para reduzir pela metade as mortes no trânsito até 2030.
“Enquanto países como Alemanha e Japão alcançaram índices de 4,0 e 2,5 mortes por 100 mil habitantes, graças à formação rigorosa e políticas educativas permanentes, o Brasil ainda registra 16,6 mortes por 100 mil”, ressaltam os juristas.
Educação precária e risco do ensino passivo
No Brasil, deveria se oferecer a educação para o trânsito desde a escola, conforme prevê o artigo 76 do CTB. Mas, na prática, a maioria dos cidadãos só tem contato com o tema ao iniciar o processo de habilitação.
Nesse cenário, os advogados defendem que a manutenção das aulas teóricas em formato interativo (presenciais ou on-line em tempo real) é fundamental:
“Permitir que o ensino teórico seja feito apenas por EAD gravado é transformar o candidato em sujeito passivo das informações, capaz de passar na prova, mas sem senso crítico nem consciência cidadã”, afirmam.
Inclusão social deve vir por políticas públicas, não pela flexibilização
O parecer reconhece que a CNH tem função social, garantindo autonomia e acesso ao mercado de trabalho. Mas, para os especialistas, isso deve ser alcançado por programas sociais, como a CNH Social, e não pela redução da qualidade da formação.
“Não parece crível que, diante dos nossos índices alarmantes de mortes no trânsito, se justifique flexibilizar de forma tão ampla o processo de habilitação. A inclusão deve vir por meio de políticas públicas específicas, e não ao custo da segurança viária”, pontuam.
Risco de retrocesso
Os advogados lembram que, desde a criação do CTB em 1997 e a implementação do atual modelo de formação, houve uma queda significativa na taxa de mortalidade: de 32,7 mortes por 100 mil habitantes em 1989 para 16,6 atualmente.
“A flexibilização, da forma como foi anunciada, ameaça colocar em risco não apenas os candidatos, mas também pedestres, ciclistas e outros condutores. Trata-se de retrocesso perigoso para um país que ainda luta para reduzir seus índices de mortalidade no trânsito”, concluem Bienert e Martins.
Um chamado ao debate sobre a flexibilização da formação de condutores
O documento da OAB-PR sugere que o governo federal retome a discussão no âmbito técnico, com estudos de impacto, consultas públicas e diálogo com especialistas.
“Por mais nobre que seja a intenção de reduzir custos, isso só deve vir após análise cuidadosa sobre a efetiva melhoria da segurança e da proteção à vida”, reforçam os autores do parecer.