
A recente declaração do ministro dos Transportes, Renan Filho, sobre a intenção do Governo Federal de tornar facultativa a formação em autoescolas para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) reacendeu um debate intenso no setor de trânsito brasileiro. A proposta, apresentada como medida para baratear o custo da habilitação, enfrenta forte resistência das entidades representativas, especialistas e órgãos públicos.
Um retrocesso histórico e perigoso
A Associação Brasileira das Autoescolas (ABRAUTO) divulgou manifesto público, assinado por sua equipe técnica e jurídica, no qual classifica a medida como “um dos maiores retrocessos na história do trânsito brasileiro”, capaz de comprometer a segurança viária e a qualidade da formação de condutores.
De acordo com o documento, cerca de 45% do custo médio da CNH — estimado entre R$ 3.000 e R$ 4.000 — corresponde a taxas e serviços cobrados diretamente pelos Detrans e clínicas credenciadas (exames médico, psicotécnico, taxas de provas e emissão da CNH). Os Centros de Formação de Condutores (CFCs) ficam com os 55% restantes. Eles servem para cobrir as 45 horas/aula teóricas e 20 horas/aula práticas ministradas por instrutores qualificados em ambiente seguro e controlado.
A ABRAUTO destaca que o valor médio de uma hora/aula prática gira em torno de R$ 70, valor inferior ao de uma viagem de Uber de mesma duração. A nota ressalta a complexidade do aprendizado para operar um veículo em trânsito real, o que exige estrutura, profissionais habilitados e veículos adaptados.
Formação qualificada é questão de vida
A associação alerta que facultar a formação em autoescolas pode elevar drasticamente o número de condutores despreparados. Assim, aumentando o risco de acidentes, mortes e prejuízos à sociedade.
Além disso, o Brasil é o único país no mundo que não oferece educação formal de trânsito nas escolas, embora o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) exija essa formação desde 1997. Nesse contexto, a obrigatoriedade das horas-aula em CFCs supre, em parte, essa lacuna essencial.
Outro ponto crítico é a possibilidade de substituição da formação presencial por uma plataforma de ensino a distância (EAD) centralizada, gerida por única empresa. Ou seja, o que pode gerar concentração de receita e queda na qualidade do ensino para milhões de novos condutores por ano.
A complexidade da direção e o papel social dos CFCs
A aprendizagem da condução transcende o simples manejo do veículo, envolvendo interação com diversos atores do trânsito e infraestrutura viária. Com frota que ultrapassa 125 milhões de veículos, o Brasil exige um sistema robusto de formação, que os CFCs atualmente oferecem com mais de 13 mil unidades, mais de 120 mil profissionais e ampla estrutura física e pedagógica.
A sugestão do ministro de que o candidato poderia optar por aulas com instrutores autônomos ou em circuitos fechados, como condomínios, é vista como um desrespeito à segurança pública e à qualidade do ensino. Dessa forma, transferindo a responsabilidade estatal aos cidadãos e colocando em risco a integridade de moradores e aprendizes.
ABRAUTO rebate comparações e defende políticas sociais
A entidade rejeita a comparação feita pelo ministro com o ingresso em universidade pública e o uso de cursinhos facultativos, argumentando que dirigir um veículo envolve risco direto à vida. Assim, exigindo formação rigorosa.
Quanto à alegação de que 40% dos motociclistas dirigem sem habilitação, a ABRAUTO destaca a existência da Lei nº 15.153/2025. Ela destina recursos do Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito para custear a CNH Social para população de baixa renda. A falha está na fiscalização ineficaz bem como na negligência estatal, e não na formação.
Leia aqui o Manifesto da ABRAUTO na íntegra
Segurança em primeiro lugar
A crítica mais dura partiu do presidente da FENEAUTO, Ygor Valença, que classificou as declarações do ministro como “populistas e inconsequentes”. De acordo com ele, o discurso ignora a gravidade da crise de segurança viária no país e tenta transformar uma questão de vida em moeda política.
“A fala de que ‘a população já dirige e não precisa de autoescolas’ revela a total desconexão do ministro com a realidade do trânsito brasileiro”, afirmou.
Valença também comparou a proposta ao que ocorreu com os aplicativos de transporte. Conforme ele, o discurso de liberdade e desburocratização levou à precarização, aumento da informalidade e perda de segurança para trabalhadores e usuários.
O presidente da FENEAUTO ainda enfatiza que a proposta do ministro pode ser motivada por interesses políticos. Ele convoca a sociedade a participar da Comissão Geral dos CFCs no Congresso Nacional, marcada para 3 de setembro. O objetivo é defender a valorização da educação para o trânsito.
O que dizem os exemplos internacionais
A proposta do governo também foi criticada por Valença por desconsiderar a experiência internacional. Países com índices exemplares de segurança viária — como Suécia, Japão, Alemanha, Holanda e Canadá — mantêm formações rigorosas, com exigência de aulas teóricas e práticas, avaliações psicológicas bem como exames presenciais.
Por outro lado, nações que permitem a habilitação sem formação estruturada, como Nigéria e Índia, enfrentam níveis alarmantes de acidentes e mortes no trânsito.
Profunda preocupação
A Associação das Autoescolas de Santa Catarina (ATRAESC) também reagiu com firmeza à proposta do governo federal. Em manifestação assinada pela presidente Yomara Ribeiro, a entidade expressou “profunda preocupação e repúdio” à ideia de extinguir a obrigatoriedade da formação em autoescolas para obtenção da CNH, classificando-a como uma iniciativa “irresponsável, com forte viés populista e eleitoral”.
Para a ATRAESC, ao tentar flexibilizar o processo de habilitação sob o argumento de “democratização”, o Ministério dos Transportes desconsidera não apenas os impactos diretos sobre a segurança viária, mas também os milhares de empregos que podem ser perdidos e a inconstitucionalidade de se alterar normas estruturais por meio de simples portarias ou resoluções.
De acordo com Yomara, o plano de implementação já nos próximos meses, sem debate técnico ou jurídico adequado, demonstra pressa incompatível com a seriedade do tema. Ela relatou ter participado de uma reunião com o ministro Renan Filho, em que apontou os riscos de enfraquecer a formação dos condutores e comprometer a responsabilidade social que os CFCs exercem.
“Apesar de todos os argumentos apresentados, o ministro se manteve irredutível em sua posição”, afirmou.
A dirigente também levantou questionamentos sobre a real motivação da proposta. Assim, cobrando mais transparência sobre quais interesses estariam por trás de alternativas como cursos online, plataformas privadas ou modelos de “autodidatismo supervisionado”.
A ATRAESC anunciou que, caso a proposta avance, está pronta para judicializar a questão, mobilizar parlamentares e unir esforços com outras entidades para impedir o que considera “um grave retrocesso”. Para a associação, autoescola não é entrave, mas sim garantia de uma formação segura, cidadã e voltada à preservação da vida no trânsito.
Mulheres no trânsito
Carolina Marino, do Instituto Nacional Mulheres pelo Trânsito, também se posicionou de forma contundente sobre a proposta.
Segundo ela, o dia 29 de julho marca um momento de luto para todos os profissionais da educação para o trânsito. Em especial para as mulheres que atuam nesse setor. Carolina lembra que o presidente Lula e a ministra Gleisi Hoffmann assinaram, em 2022, uma carta-compromisso em defesa da educação no trânsito — o que torna a proposta ainda mais contraditória. Em um apelo carregado de indignação, ela dispara:
“Trânsito não é comércio. A vida não tem preço.”
Detrans defendem acessibilidade com qualidade na formação
Em nota oficial assinada por Givaldo Vieira, presidente da Associação Nacional dos Detrans (AND), a entidade reforçou que qualquer mudança no processo de habilitação precisa ter como prioridade a qualidade da formação e a segurança no trânsito.
“É fundamental que se busquem alternativas para tornar a CNH mais acessível, sim, mas sem comprometer a excelência do processo de aprendizagem”, afirma a nota.
A AND defende que a formação de condutores deve continuar sendo tratada como política pública de segurança viária. Além disso, que medidas estruturadas, como a CNH Social, ampliem o acesso de pessoas de baixa renda ao processo de habilitação.
Modernização com responsabilidade: o desafio de equilibrar acesso e segurança
Embora discordem frontalmente da proposta de tornar facultativa a passagem por autoescolas, as entidades reconhecem a importância de modernizar o processo de formação de condutores no Brasil. Isso inclui regulamentar o ensino para veículos com câmbio automático, incorporar modalidades remotas com qualidade assegurada assim como investir em políticas públicas que ampliem o acesso à habilitação para a população de baixa renda.
O desafio, afirmam, é promover inclusão e inovação sem comprometer a segurança viária — um compromisso que deve permanecer inegociável.