A uberização da formação de condutores: quando o país transforma uma política pública em um experimento arriscado

Conforme Alysson Coimbra, estamos redesenhando a lógica de formação de motoristas e, no meio do caminho, abrindo espaço para algo muito maior: a uberização da formação de condutores no Brasil. Leia o artigo.


Por Artigo
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Para o médico, a lição é clara: quando governos se apaixonam por seus próprios planos e fecham os ouvidos para quem alerta, o custo não é apenas político, é social. Foto: Félix Carneiro/Governo do Tocantins

Alysson Coimbra

O Brasil está diante de uma mudança que parece técnica, administrativa e até moderna, mas que carrega um impacto profundo sobre a segurança viária: a flexibilização crescente da formação de condutores e a transferência progressiva desse processo para plataformas digitais. À primeira vista, o discurso soa convincente, fala em menos custos, burocracias e exigências, promete agilidade e inclusão, cria a sensação de que finalmente estamos simplificando um sistema “engessado”.

Mas basta olhar com atenção para perceber que não estamos simplificando.

Estamos redesenhando a lógica de formação de motoristas e, no meio do caminho, abrindo espaço para algo muito maior: a uberização da formação de condutores no Brasil.

Uberização, aqui, significa a União retirar dos Estados seu papel estruturante, fragmentar responsabilidades, transferir riscos para o indivíduo e concentrar ganhos nas plataformas que intermediam o processo e, consequentemente, em quem passa a apoiá-las nos bastidores de Brasília. É exatamente isso que começa a acontecer.

Incentivar o autoaprendizado da legislação de trânsito por EAD pode soar inovador, mas ignora que estamos falando de um conhecimento que salva vidas, que exige mediação, debate, exemplificação e reflexão crítica. Quando, além disso, se reduz o tempo mínimo de direção, retira-se do candidato a vivência diária das ruas, o convívio com o erro supervisionado, o enfrentamento gradual de situações reais. Forma-se mais rápido, mas se forma pior.

Enquanto esse discurso ganha espaço, surgem plataformas digitais intermediando aulas particulares e oferecendo descontos maiores quanto mais o aluno compra, quase sempre muito além das duas horas prometidas como “suficientes”, algo que sabemos que não é. Ao mesmo tempo, taxas administrativas sobem em alguns Estados e surge um mercado novo, pouco transparente, que passa a concentrar recursos e influência. A promessa pública é de barateamento e agilidade, mas a realidade é uma cadeia de intermediação que desloca o dinheiro, reorganiza o poder e não entrega o que anuncia, e até mais caro do que custava antes desse novo alinhamento que cria nos inimigos públicos: como CFC,s e profissionais da saúde.

Esse movimento não acontece no vazio, se encaixa em um país que, desde os anos 1970, ampliou de forma acelerada sua frota de motocicletas, impulsionado por incentivos industriais e renúncias fiscais ,especialmente na Zona Franca de Manaus que permanecem até hoje sem justificativa clara. É como se o Estado continuasse premiando o setor que mais gera mortes e custos ao sistema público. O resultado está nas ruas: risco elevado, sequelas permanentes, famílias destroçadas. Não são estatísticas abstratas, são trajetórias interrompidas.

O mais grave é que, mesmo diante desse cenário, políticas recentes caminham na direção oposta do que a prudência recomendaria.

Permite-se comprar motocicleta sem exigir CNH, fiscaliza-se pouco, mantém-se aberta a possibilidade de alguém sair da loja pilotando sem jamais ter passado por formação adequada. Algo que poderia ter sido corrigido na mesma Medida Provisória que hoje desarticula um sistema que, com todos os seus problemas, ainda formava, cuidava e fiscalizava candidatos e condutores há mais de 27 anos.

Essa tendência não é nova na história brasileira. O país já apostou, mais de uma vez, em soluções centralizadoras e narrativas sedutoras que ignoraram alertas técnicos. Na era Vargas, a crença de que o poder concentrado resolveria tudo abriu crises profundas e tensões institucionais difíceis de administrar. Antes do impeachment de Dilma Rousseff, sinais de desajuste fiscal e decisões arriscadas foram minimizados até que a realidade explodiu diante do país.

A lição é clara: quando governos se apaixonam por seus próprios planos e fecham os ouvidos para quem alerta, o custo não é apenas político, é social.

Hoje, vemos algo semelhante no trânsito. Um governo com contas públicas pressionadas aposta em um plano apresentado como moderno, mas que desmonta mecanismos de proteção, amplia risco e transfere responsabilidades. E o faz sob a condução de um ministro que, apesar de estrutura e visibilidade, não conseguiu resultados suficientemente sólidos para obter avaliações técnicas amplamente positivas das instituições que acompanham essas políticas.

Não se trata de personalizar o problema. Trata-se de reconhecer o risco: é temerário reorganizar um sistema que envolve vidas humanas com base em promessas mais retóricas do que técnicas.

Enquanto isso, o transporte público segue caro, lotado e ineficiente, capturado por estruturas que concentram poder e influenciam decisões políticas. Sem alternativas, trabalhadores recorrem à moto como meio de sobrevivência e depois entram na estatística que insistimos em chamar de “fatalidade”.

Não é fatalidade. É consequência.

Flexibilizar a formação, empurrar o aprendizado para plataformas digitais, reduzir prática e criar um mercado de intermediação crescente não é modernizar. É abdicar do papel estatal que protege, transformar formação em produto e aceitar que parte da sociedade pagará com o corpo e com a vida o preço da pressa.

Por isso, é preciso dizer sem rodeios: não estamos diante de um avanço inevitável. Estamos diante de um experimento perigoso.

Governos passam, plataformas mudam, ciclos políticos se encerram. Mas cemitérios, UTIs e famílias quebradas permanecem.

A sociedade precisa reagir. Parlamentares, mesmo em período de recesso, precisam debater com seriedade. Os Governadores precisam se aprofundar nessa pauta com profundidade para evitar responsabilidades civis e descumprimento de leis de responsabilidade fiscal.

Por fim o governo precisa parar de contar uma história confortável e encarar os dados que gritam o contrário.

Porque, quando políticas públicas viram laboratório e cidadãos viram cobaias, não estamos falando de modernização. Não estamos falando de democratização. Estamos falando de reorganização econômica sobre um tema que é, antes de tudo, de segurança pública. ‎

Alysson Coimbra é Médico Especialista em Trânsito e Coordenador Nacional da Mobilização de Médicos e Psicólogos do Tráfego – @alyssondotransito

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