Consulta pública sobre CNH: redução de custos ou risco à segurança viária?


Por Mariana Czerwonka
CNH consulta pública
A proposta parece mirar apenas na economia para o bolso do cidadão, sem considerar o impacto direto na segurança viária. Foto: Arquivo Portal do Trânsito

O Governo Federal abriu, nesta quinta-feira (2), uma consulta pública para discutir mudanças no processo de obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A iniciativa, conduzida pelo Ministério dos Transportes, é apresentada como parte de uma proposta para modernizar e tornar mais barato o processo de formação de condutores no Brasil.

A minuta do projeto ficará disponível por 30 dias. Após esse prazo, o texto segue para análise do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A medida marca o primeiro passo de um debate que já vinha sendo ventilado nos últimos meses: a possibilidade de tornar facultativo o processo em autoescolas, permitindo que futuros motoristas escolham outras formas de se preparar para os exames teórico e prático.

Embora o governo destaque o caráter de democratização do acesso à CNH, o tema acendeu um alerta entre especialistas e representantes do setor de trânsito, que enxergam riscos na proposta.

Especialista alerta para retrocessos na formação de condutores

O especialista e diretor do Portal do Trânsito Celso Mariano manifestou preocupação com a forma como o assunto tem sido conduzido. De acordo com ele, a simplificação prometida pode significar um retrocesso de 27 anos desde a criação dos Centros de Formação de Condutores (CFCs), que substituíram as antigas autoescolas práticas e trouxeram maior rigor na preparação dos motoristas.

“O Brasil tem um trânsito muito violento. O processo de formação de condutores tem problemas, é claro, mas é melhor um processo que não seja perfeito do que processo nenhum. Minha preocupação é que, em nome da redução de custos, sejam abandonadas etapas fundamentais que foram conquistadas ao longo de quase três décadas”, afirmou.

Conforme Mariano, a proposta parece mirar apenas na economia para o bolso do cidadão, sem considerar o impacto direto na segurança viária. Ele lembra que a autoescola, apesar das críticas, muitas vezes é o único momento em que o brasileiro tem contato com educação para o trânsito, algo essencial para um país que registra altos índices de mortes e feridos em acidentes.

Outro ponto levantado pelo especialista é a comparação feita pelo ministro dos Transportes, Renan Filho, entre a autoescola e os cursinhos preparatórios para vestibular. “Não faz sentido. O cursinho não é obrigatório porque a escola regular cumpre sua função de educação. No trânsito, quem cumpre esse papel são justamente os CFCs”, ponderou.

Diferenças culturais e estruturais com outros países

Mariano também chamou a atenção para a utilização de exemplos internacionais como justificativa para flexibilizar a formação. Ele destacou que alguns estados norte-americanos permitem ao candidato estudar por conta própria e apenas prestar os exames, mas o contexto é muito diferente do brasileiro.

“Nos Estados Unidos, a cultura do automóvel é outra. As cidades foram construídas para o carro, a imputabilidade penal começa antes e há sistemas de fiscalização e punição muito mais rápidos e severos. Importar esse modelo sem considerar as diferenças estruturais e culturais seria desastroso para o Brasil”, explicou.

Entre as preocupações, o especialista citou ainda a possibilidade de se eliminar requisitos como o comando duplo nos veículos de aprendizagem, medida que garante a segurança mínima durante as aulas práticas, além da formação específica e rigorosa exigida atualmente para instrutores.

Mobilização das autoescolas

Do lado das entidades representativas, a Associação Brasileira de Autoescolas (ABRAUTO) também se manifestou. Em vídeo dirigido ao setor, a representante da entidade, Olga Catarina Zanoni, pediu calma. Ela destacou que o momento agora é de análise criteriosa da proposta que está sob consulta.

“A consulta pública não era o esperado, pois queríamos que houvesse antes uma apresentação às entidades e parlamentares. Mas agora teremos a oportunidade de rebater ponto a ponto. Estamos unidos e articulados, com mais de 10 grupos de CFCs nacionais representando cerca de 80% do setor. Vamos participar ativamente para mostrar a importância da formação nas autoescolas”, afirmou.

Olga lembrou ainda que já houve uma tentativa semelhante durante o governo anterior, com a proposta de permitir aulas EAD e simplificação de etapas práticas. Para ela, a estratégia do setor deve ser clara: analisar a minuta detalhadamente, rebater tecnicamente cada ponto e trabalhar em conjunto com os parlamentares para evitar que a mudança fragilize a formação de condutores.

O que está em jogo

A consulta pública aberta pelo governo é apenas o início de um processo que pode redefinir o modelo de formação de motoristas no país. Enquanto a promessa oficial é de redução de custos e maior acesso à CNH, os críticos lembram que a pressa pode custar vidas no trânsito.

A defesa das autoescolas se baseia na ideia de que a formação não é apenas uma etapa burocrática, mas uma política pública de educação para o trânsito. É nesse espaço que os candidatos têm contato com conceitos de cidadania, responsabilidade, direção defensiva e legislação. Ou seja, temas que dificilmente seriam abordados em cursos informais ou aulas particulares avulsas.

Mais do que discutir preços, especialistas e entidades defendem que o debate precisa estar centrado em segurança viária. Afinal, como alerta Celso Mariano, “não se pode jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

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