
Por Mauri Cruz*
A proposta do Ministro dos Transportes em eliminar a obrigatoriedade das aulas teóricas e reduzir o número de aulas práticas para obtenção da carteira nacional de habilitação, gerou profunda preocupação na totalidade das educadoras e educadores de trânsito que reconhecem, no atual processo de formação de condutores, um dos elementos chaves para a redução da violência e da letalidade no trânsito brasileiro. Falo do lugar de quem foi Diretor Presidente do Detran do Rio Grande do Sul durante a gestão do Secretario de Justiça e Segurança, Paulo Bisol e do Governador Olívio Dutra, justamente no período da implantação do novo Código de Trânsito Brasileiro – CTB que, no nosso entender, alterou o papel das autoescolas, criando os Centros de Formação de Condutores – CFCs como unidades de ensino voltadas à formação integral dos condutores numa visão de cidadania para o trânsito.
Passados 29 anos, a realidade do trânsito mudou.
A frota de veículos ultrapassou a casa dos 120 milhões, representando um crescimento de mais de 350% em relação a 1997, e a de condutores chegou a 85 milhões, representando um aumento de 184% no mesmo período.
Importante ressaltar que, apesar do crescimento vertiginoso da frota e do número de condutores habilitados, a taxa de acidentalidade caiu. Isso, certamente, em função da eficiência do atual modelo de formação de condutores através da exigência de aulas teóricas e práticas como condição para a realização das provas de habilitação.
Os números são significativos. Conforme dados da própria SENATRAN, o índice de vítimas fatais por 10 mil veículos, teve uma redução de 75%, se comparado com o último ano anterior a vigência do novo CTB, passando de 11,3 em 1997, para 2,5 mortes em 2024. Isso significa que, a cada ano, mais de 100 mil pessoas foram salvas no trânsito brasileiro. A partir desta análise, conclui-se que em 27 anos, a projeção atinge a ordem de mais de 2 milhões de pessoas salvas. Entre os especialistas em mobilidade, não há qualquer dúvida que a obrigatoriedade das aulas teóricas e práticas, combinada com a municipalização do trânsito e o rigor na fiscalização, foram fatores essenciais para essa mudança.
Frente a estes dados, a ideia de retirar a obrigatoriedade das aulas teóricas e práticas como condição para a habilitação dos condutores é impensada.
Para se ter uma ideia, se os índices de mortes no trânsito retornarem àqueles registrados a época em que as aulas não eram obrigatórias, o número de vítimas fatais por acidentes de trânsito poderá ceifar 137 mil vidas por ano, aproximadamente 375 vítimas todos os dias.
Pelo que é possível depreender das notícias veiculadas, a principal motivação do Ministro dos Transportes para justificar a retirada esta mudança seria o elevado preço de processo para a habilitação no Brasil, projetando uma redução de 80% deste custo com a retirada das aulas. No entanto, ao analisarmos os custos na maioria dos estados brasileiros, essa conta do Ministro não fecha. Na maioria dos estados, os custos das aulas teóricas e práticas representam menos de 50% do total gasto com a habilitação. As taxas públicas, os exames médico e psicológico assim como os preços das provas teóricas e práticas somam a maior parte destes custos e, pelo que diz o próprio Ministro, todos estes itens deverão continuar.
Além disto, sem a obrigatoriedade das aulas, as provas deverão ser muito mais rigorosas, aumentando o índice de reprovação e, por consequência, exigindo custos dos candidatos com aulas teóricas que certamente serão mais caras que as atuais.
Se não é para melhorar, então qual a motivação da mudança?
Certo é que o Ministro dos Transportes está na contramão de todo conhecimento acumulado em busca de um trânsito seguro, direito de todas as pessoas que circulam nas cidades e nas rodovias. Esse conhecimento demonstra que a segurança no trânsito decorre de um tripé que articula educação, engenharia e fiscalização. Sendo que a base de todo comportamento seguro no trânsito é a da educação, realizada de forma permanente, sistêmica e coerente.
É correta a preocupação em relação aos custos da CNH para os jovens das camadas mais pobres da sociedade brasileira, tradicionalmente excluídos do acesso a todos os direitos. Ocorre que, para isso, já foi criada uma política pública nacional, a CNH Social, que garante gratuidade integral ao acesso a CNH para pessoas que comprovarem não terem condições de pagar os custos. Essa medida conta com os recursos oriundo das multas de trânsito e certamente pode ser ampliada, porque União e Estados arrecadam bilhões de reais, todos anos, através do pagamento de multas pelos infratores.
Finalmente, é evidente que o sistema de habilitação de condutores necessita de melhorias, desburocratização e até mesmo redução de custos. É possível aproveitar as novas tecnologias para facilitar acesso a informações, qualificar o processo de ensino e aprendizagem e, principalmente, reduzir custos. No entanto, essas mudanças devem vir no sentido de qualificar o sistema existente e não para destruí-lo.
A prudência é comportamento essencial para um trânsito seguro. Recomenda-se que o Ministro dos Transportes desacelere na mudança pretendida e dê tempo para um diálogo mais atento com técnicos, educadores e inclusive com o Congresso Nacional visando qualificar e não precarizar o trânsito brasileiro. Estamos à disposição para contribuir com as mudanças que tragam melhorias, se realmente for esse o objetivo.
*Mauri Cruz é advogado, diretor executivo do Instituto de Direitos Humanos, Econômicos e Sociais – IDhES, sócio consultor da Usideias, professor de pós-graduação em direito à cidade e mobilidade urbana. Foi fundador e Presidente da EPTC Porto Alegre, Diretor Presidente do DetranRS e consultor da União Europeia para segurança no trânsito.