
O processo para tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) no Brasil pode passar por uma das maiores reformulações das últimas décadas. A minuta de resolução apresentada pelo Ministério dos Transportes e pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) propôs mudanças profundas na etapa prática — tanto no modo de avaliar os candidatos quanto na exigência (ou não) das aulas de direção.
Entre as novidades, está a criação de um novo sistema de pontuação no exame prático, que promete substituir o atual modelo de faltas eliminatórias e penalizações fixas. Mas a proposta também inclui um ponto polêmico: as aulas práticas deixam de ser obrigatórias, e o candidato poderá agendar o exame diretamente, sem comprovar carga horária mínima.
A reformulação, conforme o governo, busca reduzir custos, simplificar o processo e oferecer maior autonomia ao cidadão. Para especialistas em segurança viária, no entanto, a medida exige cautela — especialmente em um país onde a maioria dos motoristas só tem contato com o volante nas aulas de autoescola.
Entenda a situação
Hoje, a formação prática de condutores é regida pela Resolução nº 789/2020 do Contran, que define uma carga horária mínima de 20 horas/aula para quem busca a primeira habilitação nas categorias A (moto) e B (carro), todas obrigatoriamente realizadas em Centro de Formação de Condutores (CFC), com veículo de aprendizagem e instrutor credenciado.
A minuta em discussão, no entanto, propõe uma mudança significativa: as aulas passam a ser opcionais. O candidato poderá treinar por conta própria, com um instrutor credenciado particular, utilizando o próprio veículo — e, se desejar, poderá agendar o exame prático diretamente, sem passar pelo CFC.
A Licença de Aprendizagem de Direção Veicular (LADV) continuará existindo, mas só será necessária para quem optar por praticar em via pública antes do exame.
De acordo com a Senatran, a proposta tem como objetivo “aumentar a liberdade do cidadão, reduzindo custos e desburocratizando o processo de habilitação”.
O novo sistema de pontuação
O exame prático também muda de formato. Hoje, ele funciona por acúmulo de faltas, que variam entre leves, médias, graves e eliminatórias. O candidato é reprovado se somar três pontos negativos ou cometer uma falta eliminatória, como desrespeitar a sinalização ou subir na calçada.
Com a minuta, o sistema passa a operar por pontuação positiva. O candidato começa com 100 pontos, e cada erro desconta parte dessa pontuação de acordo com sua gravidade:
- Falta leve: -10 pontos
- Falta média: -20 pontos
- Falta grave: -30 pontos
- Falta gravíssima: -40 pontos
A reprovação ocorre se a pontuação final for inferior a 70 pontos, ou se o candidato cometer falhas críticas, como colisão, avanço de sinal vermelho ou condução perigosa.
Outra inovação é a possibilidade de nova tentativa no mesmo dia: se houver disponibilidade de examinadores e veículos, o candidato reprovado poderá refazer o teste imediatamente, sem precisar remarcar.
Como é hoje e como pode ficar
| Aspecto | Como é hoje (Res. 789/20) | Como pode ficar (Minuta) |
|---|---|---|
| Aulas práticas | Obrigatórias: mínimo de 20 horas para categorias A e B; 15 horas para adição de categoria. | Opcionais: candidato pode ir direto ao exame, com ou sem aulas em CFC. |
| Treinamento com instrutor | Somente em CFC, com veículo de aprendizagem. | Pode ser feito com instrutor credenciado particular, usando veículo próprio. |
| Exame prático | Baseado em faltas negativas; 3 pontos ou falta eliminatória resultam em reprovação. | Candidato inicia com 100 pontos; faltas reduzem pontuação proporcionalmente. |
| Repetição de prova | Precisa remarcar e pagar nova taxa. | Pode haver nova tentativa no mesmo dia, se houver disponibilidade. |
| Validade do processo | 12 meses. | Sem prazo determinado. |
| Papel do CFC | Central na formação e acompanhamento do aluno. | Passa a ser opcional em parte do processo, com a possibilidade de outros entes ofertarem o conteúdo teórico. |
Especialistas alertam para os riscos e desafios
De acordo com Celso Mariano, especialista em trânsito e diretor do Portal do Trânsito, a modernização das provas é bem-vinda, mas a retirada da obrigatoriedade das aulas práticas levanta sérias preocupações.
“O sistema de pontuação pode tornar o processo mais transparente e objetivo, mas o problema está antes disso: como garantir que o candidato tenha realmente aprendido a dirigir, se ele pode simplesmente ir ao exame sem nunca ter treinado formalmente?”, questiona.
Segundo Mariano, a mudança pode até gerar um aumento inicial nas tentativas de exame — com mais reprovações —, mas o impacto mais grave seria pedagógico e social:
“Hoje, muitos candidatos só têm contato real com o trânsito nas aulas de CFC. Tirar essa exigência é descolar a formação da prática da segurança. Dirigir é uma habilidade técnica e comportamental, não se aprende sozinho.”
O especialista também destaca que, embora a intenção do governo seja reduzir custos, a ausência de controle sobre o treinamento pode gerar o efeito inverso. “Se o candidato reprovar várias vezes por falta de preparo, ele vai gastar mais com taxas e deslocamentos. A simplificação precisa vir com responsabilidade, não com improviso.”
Status da proposta e próximos passos
O processo de consulta pública da minuta se encerrou no dia 02 de novembro. Entidades representativas de autoescolas, instrutores e especialistas em segurança viária se manifestaram contra a retirada da obrigatoriedade das aulas práticas. Argumentam que a proposta enfraquece a formação técnica e pode comprometer o desempenho dos candidatos nas provas e, principalmente, a segurança nas vias.
Celso Mariano reforça que o debate precisa ser feito com base em evidências:
“É preciso discutir dados, reprovações, causas de acidentes e eficiência pedagógica. Modernizar é necessário, mas nunca à custa da segurança. O sistema de pontuação é uma boa ideia, mas sem uma base sólida de formação, será apenas uma mudança de cálculo — não de cultura.”