Renovação automática da CNH é risco sanitário: quando a estatística ignora a saúde, a vida entra em perigo

Aproximadamente 38% dos acidentes de trânsito guardam relação direta ou indireta com condições orgânicas de saúde do condutor. Leia o artigo do Dr. Alysson Coimbra.


Por Artigo
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Foto: Félix Carneiro / Governo do Tocantins

Por Alysson Coimbra*

No Brasil, a cada 2 minutos uma pessoa é internada no Sistema Único de Saúde (SUS) em decorrência de um sinistro de trânsito. Esse dado, por si só, já deveria impor prudência máxima a qualquer mudança estrutural no sistema de habilitação.

Somado a isso, dados técnicos amplamente utilizados no campo da medicina do tráfego, inclusive em análises e publicações da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (ABRAMET), indicam que aproximadamente 38% dos acidentes de trânsito guardam relação direta ou indireta com condições orgânicas de saúde do condutor. Estamos falando de alterações clínicas, neurológicas, oftalmológicas e psíquicas que interferem de forma concreta na capacidade de dirigir com segurança.

Ignorar esses números não é opção técnica, é uma escolha política com impacto direto sobre a saúde pública e a preservação da vida.

A discussão sobre a renovação automática da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), baseada exclusivamente em registros administrativos como o Registro Nacional Positivo de Condutores (RNPC), precisa ser recolocada no seu devido lugar. Não se trata de desburocratização, e sim de risco sanitário coletivo, por desconsiderar riscos individuais e coletivos no trânsito.

Visão: o sentido mais crítico da direção

Mais de 90% das informações utilizadas na condução veicular são captadas pela visão. Reduções de acuidade visual, alterações de campo visual, dificuldades de visão noturna, perda de sensibilidade ao contraste e doenças progressivas como catarata, glaucoma, retinopatias e degeneração macular evoluem de forma silenciosa e, frequentemente, não são percebidas pelo próprio motorista em seus estágios iniciais.

A ausência de envolvimento em ocorrências ou infrações de trânsito não significa ausência de risco:
significa, muitas vezes, sorte estatística.

Sem avaliação periódica por Especialistas em Medicins do Tráfego, condições oftalmológicas por exemplo seriam negligenciadas, permitindo que motoristas com déficits progressivos sigam conduzindo veículos até que o erro aconteça, e não até que o risco seja prevenido.

Doenças progressivas e silenciosas: o perigo invisível

Hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, distúrbios neurológicos, apneia do sono, transtornos cognitivos iniciais e efeitos adversos de medicamentos são condições altamente prevalentes na população economicamente ativa.

Muitas dessas doenças:

A avaliação médica periódica existe exatamente para interceptar o risco antes do sinistro, e não para justificar decisões depois que vidas já foram perdidas.

Saúde mental e comportamento no trânsito

Impulsividade, agressividade, baixa tolerância à frustração, transtornos de humor, transtornos de personalidade e uso abusivo de substâncias psicoativas são fatores reconhecidos pela literatura científica como determinantes do comportamento de risco no trânsito.

Nenhum algoritmo ou banco de dados administrativo é capaz de avaliar:

A avaliação psicológica não é um entrave burocrático. É uma ferramenta de proteção coletiva.

Bom condutor não é, necessariamente, condutor apto do ponto de vista da saúde física, mental e psicológica.

É verdade que o Brasil possui um grande contingente de bons condutores. Estimativas indicam que cerca de 90% dos motoristas não se envolvem rotineiramente em infrações graves ou acidentes.

Mas esse dado, isoladamente, não autoriza a supressão dos exames de aptidão.

Conduta passada não garante aptidão presente. Histórico administrativo positivo não substitui avaliação de saúde.

A renovação automática parte de uma premissa perigosa: a de que ausência de registro negativo equivale à aptidão clínica e psicológica, algo que não encontra respaldo na medicina, na psicologia nem no direito brasileiro.

O artigo 147 do Código de Trânsito Brasileiro é claro e inequívoco ao estabelecer que os exames de aptidão física e mental e a avaliação psicológica são condições preliminares e obrigatórias para a obtenção e renovação da CNH.

Utilizar uma prerrogativa administrativa para suprimir atos técnicos de saúde significa extrapolar os limites legais, transformar um tema sanitário em formalidade burocrática e institucionalizar a negligência preventiva.

Ignorar os dados científicos, os números do SUS e o comando expresso da lei não é neutralidade administrativa. É assumir o risco de produzir danos previsíveis.

Código de Trânsito Brasileiro (CTB), segurança viária e responsabilidade histórica

O Código de Trânsito Brasileiro não nasceu por acaso, é resultado de décadas de construção técnica, científica e institucional, sempre orientado por um princípio central: a preservação da vida.

Atropelar essa história, relativizar a segurança viária e flexibilizar barreiras sanitárias fundamentais não pode ser tratado como ajuste administrativo, muito menos como estratégia política de curto prazo.

Quando a cada dois minutos um brasileiro é internado no SUS por causa do trânsito, e quando 38% dos sinistros têm relação com condições de saúde, ignorar esses dados é fechar os olhos para a realidade.

Nenhum projeto pessoal de poder, nenhuma ambição eleitoral e nenhuma narrativa construída a partir de um gabinete ministerial pode ser maior do que a segurança viária, a saúde pública e a história do Código de Trânsito Brasileiro.

Esse tema exige ser enfrentado com seriedade técnica, responsabilidade institucional e respeito à vida. Porque, quando a prevenção é descartada, a conta chega , e ela chega em vidas perdidas precocemente a partir de decisões desprovidas de conhecimento e cientificidade.

* Alysson Coimbra é Médico do Tráfego e coordenador da Mobilização Nacional de Médicos e Psicólogos do Tráfego – @alyssondotransito

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