
Por Renan da Cunha Soares Junior*
A relação do brasileiro com o automóvel ultrapassa a funcionalidade mecânica, atingindo esferas simbólicas de poder, identidade e cidadania. No cenário contemporâneo, a posse de um automóvel transcende a mera necessidade de locomoção. O veículo consolidou-se como um dos principais mediadores de status social e um espelho da identidade do proprietário. Para compreender esse fenômeno, é preciso analisar tanto a psique do consumidor quanto as raízes socioculturais que moldam o uso do espaço público.
O comportamento do consumidor de automóveis é movido por uma complexa teia de fatores psicológicos e sociológicos. A compra não se encerra no objeto físico, mas no “pacote de significados” que a marca e o modelo carregam. O autor destaca que o automóvel atua como um símbolo de conquista e diferenciação, onde o consumidor busca projetar uma imagem de sucesso e pertencimento a determinados grupos sociais (SOARES JUNIOR et Al. , 2016). Assim, o carro deixa de ser um bem de capital para tornar-se um componente da personalidade do indivíduo.
Essa visão é profundamente ampliada pela perspectiva antropológica de Roberto DaMatta.
Em sua obra, DaMatta (2010) discute como o carro, no Brasil, funciona como uma “casa ambulante”. Para o autor, o automóvel permite que o indivíduo transporte sua privacidade e seus privilégios para o domínio público da rua. No habitáculo do veículo, o cidadão sente-se protegido e, muitas vezes, superior aos que transitam a pé. DaMatta (2010) argumenta que a “Fé em Deus e Pé na Tábua” reflete uma cultura onde as leis de trânsito são vistas como obstáculos à vontade individual, e o carro torna-se uma ferramenta de afirmação social frente ao anonimato da massa.
A convergência entre esses pensamentos revela que o status da posse do carro cria uma hierarquia invisível nas vias. Enquanto Soares Junior (2013) aponta que a escolha do modelo é uma forma de comunicação não verbal de poder aquisitivo e estilo de vida, DaMatta (2010) observa que esse poder é exercido na prática por meio da ocupação do espaço e do desrespeito à impessoalidade das normas. O automóvel, portanto, opera como um ranqueamento : quanto mais imponente o veículo, maior a percepção de que seu condutor possui direitos que se sobrepõem aos deveres coletivos.
Em suma, o status conferido pelo automóvel é um reflexo de uma sociedade que valoriza o “ter” como condição para o “ser”. A superação dos desafios de mobilidade e segurança viária passa, necessariamente, pela desconstrução dessa carga simbólica, transformando o carro de um instrumento de poder em uma ferramenta de utilidade social e responsabilidade compartilhada.
Aprofundando a análise sobre segurança viária a discussão sobre a posse do automóvel e o status social ganha uma dimensão crítica de saúde pública e responsabilidade sistêmica.
Enquanto Soares Junior foca no comportamento do consumidor e DaMatta na simbologia cultural, Pavarino (2004) propõe que a educação para o trânsito deve superar a mera transmissão de “etiqueta viária” — regras de cortesia ou técnicas de segurança — para se tornar uma prática crítica e questionadora. Para o autor, o trânsito não é apenas um fluxo de veículos, mas um “universo de relacionamento social” no espaço público onde se manifestam desigualdades e conflitos de poder.
Pavarino reforça a visão da OMS de que as lesões no trânsito constituem uma crise global de saúde pública evitável. Ele argumenta que o foco excessivo na “falha humana” individual — que muitas vezes justifica o status de poder do condutor — mascara falhas sistêmicas no projeto das vias e na gestão da mobilidade. Sob essa ótica, a posse do carro não deveria conferir privilégios de circulação, mas sim uma responsabilidade maior, dado que o condutor opera uma máquina capaz de causar danos graves à saúde coletiva.
Diferente de uma abordagem puramente técnica, Pavarino defende a transversalidade da educação para o trânsito. Ele propõe que se debata o tema nas escolas não apenas para “formar futuros motoristas”, mas para questionar a própria ocupação do espaço urbano e os riscos que a velocidade excessiva impõe aos mais vulneráveis, como pedestres e ciclistas. Essa educação visa desconstruir a ideia de que a rua pertence prioritariamente aos veículos motorizados, um pilar central do status discutido anteriormente.
Alinhado à filosofia sueca Visão Zero, o trabalho de Pavarino enfatiza a fragilidade do corpo humano como limite para o planejamento viário.
Se o carro é um símbolo de status e “casa ambulante”, como diz DaMatta, Pavarino pondera que esse isolamento privado não pode ignorar que o sistema deve ser desenhado para perdoar o erro humano. A segurança viária, portanto, exige uma “responsabilidade compartilhada” onde o Estado, a indústria e a sociedade civil atuam juntos para reduzir a morbimortalidade.
A superação desse quadro exige uma abordagem sistêmica, como a que defende a Organização Pan-Americana da Saúde. Nela, entende-se a segurança como um direito humano que se sobrepõe ao fetiche da velocidade ou da distinção social. Em suma, salvar vidas no trânsito exige desconstruir o carro como instrumento de poder, transformando-o em uma ferramenta de utilidade social e responsabilidade compartilhada.
Referências Bibliográficas
DAMATTA, Roberto. Fé em Deus e pé na tábua: ou como e por que o trânsito enlouquece no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
OPAS. Organização Pan-Americana da Saúde. Segurança de pedestres: manual de segurança
viária para gestores e profissionais da área. Brasília: OPAS, 2013. Disponível em:
https://iris.paho.org/items/9b1a313c-9d26-4028-ae59-dfb2ee7f57c9
PAVARINO FILHO, Roberto Victor. Aspectos da educação de trânsito decorrentes das
proposições das teorias da segurança: problemas e alternativas. Revista dos Transportes
Públicos – ANTP, São Paulo, ano 26, n. 103, p. 49-72, 2004. Disponível em :
https://transportes.anpet.org.br/anpet/article/view/127
SOARES JUNIOR, Renan da Cunha; LIMA, Ana Cristina Alves; GRUBITS, Heloisa Bruna. O
comportamento do consumidor de automóveis. Multitemas, 21(50), 2016.
https://doi.org/10.20435/1117 . Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/315849201_O_comportamento_do_consumidor_d
e_automoveis
*Renan da Cunha Soares Júnior é Psicólogo, Especialista em Psicologia do Trânsito, Educação para o Trânsito e Psicologia da Comunicação e do Marketing. Possui Mestrado em Doutorado em Psicologia da Saúde e é Diretor Nacional de Comunicação da ABRAPSIT.