Da rigidez ao desmonte? O caminho da formação de condutores até o CNH do Brasil
Análise completa da evolução das normas de formação de condutores no Brasil: do modelo estruturado e rigoroso iniciado em 2004 ao processo profundamente flexibilizado de 2025.

O processo de formação de condutores no Brasil nunca foi estático. Ao longo de duas décadas, diferentes resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) moldaram o que se entende como o padrão mínimo — e aceitável — de preparo para quem deseja obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Esse percurso, porém, parece ter chegado a um ponto de inflexão: a Resolução 1.020/2025, que faz parte do projeto CNH Brasil, propõe uma flexibilização tão profunda que especialistas classificam como o maior retrocesso já registrado na política de educação para o trânsito.
“A história da formação de condutores no Brasil é uma história de amadurecimento lento, de correções baseadas na realidade e em evidências. O que estamos vendo agora é um desmonte sem justificativa técnica”, avalia Celso Mariano, especialista em trânsito e diretor do Portal do Trânsito.
A seguir, o Portal apresenta uma análise completa da evolução normativa — e dos riscos envolvidos na proposta atual.
Fase 1 — A estruturação inicial (Resolução 168/2004)
A Resolução 168/2004 representou um marco na formação de condutores. Com ela, estabeleceu-se uma padronização nacional, com cargas horárias definidas, sequência lógica do processo e diretrizes mínimas para avaliar a aptidão técnica e psicológica dos candidatos.
O curso teórico foi fixado em 30 horas/aula, distribuídas em legislação, direção defensiva, primeiros socorros, meio ambiente e funcionamento do veículo. Já a prática tinha 15 horas/aula obrigatórias. O processo tinha validade de 12 meses e exigia a aprovação em exames teóricos e práticos estruturados.
Era um modelo simples, mas com coerência pedagógica e alinhado a uma lógica de formação mínima.
Fase 2 — O endurecimento necessário (Resolução 285/2008)
Com o número crescente de acidentes envolvendo motociclistas e motoristas inexperientes, o Contran revisou a norma em 2008. A Resolução 285 ampliou a carga horária teórica para 45 horas/aula e a prática para 20 horas/aula, incorporando conteúdos específicos para motociclistas.
A justificativa baseava-se em dados de sinistralidade — e refletia o entendimento de que dirigir não é um ato meramente mecânico, mas uma atividade complexa que exige conhecimento, treino e atitudes seguras.
Para especialistas, esse foi um período de maturação. “A resolução de 2008 foi uma resposta direta a problemas reais. Houve aumento de acidentes, e o Estado reagiu com mais formação. Esse é o caminho responsável”, lembra Celso Mariano.
Fase 3 — Consolidação e modernização (Resolução 789/2020)
A Resolução 789/2020 consolidou e modernizou todo o sistema. Revogou dezenas de normas e definiu uma estrutura clara, mantendo as cargas horárias de 2008.
Além disso, detalhou a infraestrutura necessária nos Centros de Formação de Condutores (CFCs), requisitos para instrutores, frota, procedimentos de exames e parâmetros mínimos de qualidade — garantindo maior uniformidade entre estados.
Era a etapa mais madura da política pública: ainda criticável em pontos, mas com coerência, transparência e previsibilidade.
Fase 4 — A ruptura completa (Minuta da Resolução 1.020/2025)
A minuta publicada em dezembro de 2025, porém, rompe com duas décadas de construção técnica. Em vez de aprimorar o modelo vigente, propõe um sistema totalmente flexibilizado, que especialistas classificam como desarticulado, perigoso e contrário às evidências internacionais de segurança viária.
Entre as principais mudanças estão:
1. Fim das cargas horárias mínimas teóricas
Os cursos passam a não ter qualquer quantidade mínima de aulas — podendo durar 5 horas, 1 hora ou até ser oferecidos como microcursos fragmentados. Na prática, extingue-se a noção de ensino estruturado.
2. Redução da prática para apenas 2 horas/aula
Um dos pontos mais criticados por educadores e profissionais da segurança viária. Para Celso Mariano, a proposta “coloca candidatos inexperientes diretamente nas ruas com preparo equivalente a zero”.
“Falar em 2 horas de prática é ignorar completamente a realidade do trânsito brasileiro. É incompatível com qualquer indicador minimamente sério de risco”, afirma.
3. Ampliação ilimitada dos ofertantes
Instrutores autônomos, entidades diversas e até órgãos do Sistema Nacional de Trânsito poderão oferecer formação. Não há garantias de infraestrutura, padronização ou acompanhamento pedagógico.
4. Veículo próprio do aluno em aulas e exames
Embora pareça uma medida de liberdade, especialistas temem impactos na segurança do próprio candidato e de terceiros. Veículos particulares nem sempre têm dupla direção, manutenção adequada ou seguro para atividade de instrução.
5. Novo modelo de avaliação prática
A prova passa a funcionar por pontuação: começa em zero e soma pontos conforme o candidato comete infrações equivalentes às previstas no CTB. O limite de aprovação é 10 pontos.
Para críticos, o modelo aproxima a avaliação da lógica das infrações reais, mas pode facilitar comportamentos inseguros justamente no momento da habilitação.
O que está em jogo
A evolução histórica mostra um movimento claro: o Brasil começou com uma formação mínima, ampliou-a conforme os acidentes aumentaram, consolidou o modelo e agora pode desmontá-lo por completo.
A pergunta que ecoa entre especialistas é direta: qual é a justificativa técnica para reduzir a formação justamente quando as mortes no trânsito continuam elevadas e motociclistas representam mais da metade das vítimas?
Celso Mariano sintetiza essa preocupação. “Formar condutores é uma política pública de altíssimo impacto social. Boas decisões salvam vidas; más decisões custam vidas. A minuta desconsidera tudo o que aprendemos até aqui.”
As consequências práticas dessa mudança de rota
A Resolução 1.020/2025 não representa apenas uma mudança normativa. Ela sinaliza uma mudança de paradigma: do ensino estruturado para o ensino mínimo; do rigor para a informalidade; da formação qualificada para a improvisação.
O debate, portanto, não é burocrático — é sobre segurança viária, preservação de vidas e responsabilidade do Estado na formação de novos motoristas.
O tema seguirá em destaque no Portal do Trânsito.
