Estudo do governo sobre autoescolas não é conclusivo e não justifica mudança na formação de condutores, apontam especialistas
No meio científico, o estudo é considerado insuficiente para respaldar uma mudança drástica em políticas públicas com potenciais reflexos diretos na segurança da população.

Um estudo técnico elaborado pelo Ministério dos Transportes vem sendo citado como base para a proposta de extinguir a obrigatoriedade das aulas em autoescolas para obtenção da CNH. A leitura simplificada do documento, no entanto, pode induzir a interpretações precipitadas sobre a real influência da formação prática na redução de mortes no trânsito brasileiro.
Apesar de o estudo apontar que a exigência de aulas práticas não apresentou impacto estatisticamente significativo na redução da letalidade no trânsito, a própria conclusão do relatório reconhece “ausência de significância estatística” — expressão técnica que indica que os dados analisados não são suficientes para se afirmar, com segurança, que não há relação entre a formação dos condutores e os índices de mortalidade. Ou seja, o estudo não pode ser usado como prova de que as autoescolas não fazem diferença.
O documento, produzido pela Subsecretaria de Fomento e Planejamento do Ministério dos Transportes em abril de 2025, baseou-se em dados do Renaest, Renach e Renavam. A análise focou nos estados do Ceará, Distrito Federal e São Paulo, onde havia registros mais detalhados sobre a aplicação da obrigatoriedade das aulas práticas. A proposta foi correlacionar a adoção dessas exigências à ocorrência de infrações, acidentes e mortes.
Ainda assim, conforme especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, a falta de resultados estatisticamente significativos não significa que a formação seja irrelevante, apenas que os dados disponíveis até o momento não permitem uma conclusão definitiva. No meio científico, considera-se isso insuficiente para respaldar uma mudança drástica em políticas públicas com potenciais reflexos diretos na segurança da população.
Melhora dos indicadores após o CTB
Um levantamento feito pelo Portal do Trânsito mostra que o Brasil registrou avanços importantes desde a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) em 1998 — marco que consolidou a obrigatoriedade da formação teórica e prática dos condutores. O índice de mortes no trânsito, que era de 32,7 por 100 mil habitantes em 1989, caiu para cerca de 15,5 a partir de 2018, mesmo com uma frota de veículos quatro vezes maior.
Especialistas em segurança viária, ouvidos pelo Portal do Trânsito à época, como Roberto Victor Pavarino, da OPAS/OMS, destacam que essa evolução só foi possível graças ao conjunto de medidas adotadas: legislação mais rigorosa, fiscalização mais presente, e especialmente, processos mais estruturados de formação de condutores.
“Não é uma única ação que muda os resultados. É a combinação de engenharia, fiscalização, educação e esforço legal. A formação de condutores é um dos pilares disso tudo”, ressaltou Pavarino.
Formação frágil, mas necessária
O professor David Duarte Lima, especialista em segurança no trânsito, reconhece que a formação atual dos condutores brasileiros tem falhas. Mas adverte que eliminar completamente a exigência das aulas em autoescolas seria um retrocesso perigoso.
“Mesmo com falhas, uma formação ruim ainda é melhor do que nenhuma. Dirigir exige muito mais do que saber operar um veículo. Exige percepção de risco, ética e convivência — aspectos que precisam ser trabalhados com orientação e acompanhamento”, afirma Lima.
Ele cita o exemplo da Espanha, onde a melhoria na formação reduziu em 80% a mortalidade no trânsito.
O perigo da simplificação
A tentativa de correlacionar a obrigatoriedade das aulas práticas com a mortalidade no trânsito sem considerar o contexto mais amplo pode levar a conclusões distorcidas. Como lembrou Celso Alves Mariano, especialista em trânsito e diretor do Portal do Trânsito & Mobilidade, é fundamental analisar o “filme”, e não apenas a “fotografia”.
“Depois da entrada em vigor do CTB, o Brasil trilhou um caminho que trouxe resultados visíveis. Alterar o que está funcionando — como é o caso da formação de condutores — seria como jogar fora anos de conquistas construídas com esforço coletivo”, avalia Mariano.
Apesar das falhas ainda existentes, a formação por meio das autoescolas é uma das poucas oportunidades que o cidadão tem de receber educação para o trânsito no Brasil, já que a educação viária nas escolas segue sendo incipiente.
Debate deve continuar, mas com responsabilidade
É preciso debater com maior profundidade a proposta de tornar facultativo o ensino nas autoescolas — mas com base em evidências sólidas e com atenção às consequências que tal medida pode trazer à segurança de todos. O estudo técnico do Ministério dos Transportes não pode, por si só, embasar uma mudança tão significativa, justamente por não apresentar conclusões definitivas.
“Se há falhas na formação atual, o caminho mais sensato é buscar o aprimoramento e não a supressão de uma etapa essencial do processo. A responsabilidade de formar condutores conscientes e preparados não é um luxo, é uma necessidade para salvar vidas”, conclui Mariano.

Exatamente, educação nunca é demais, não se pode equiparar o Brasil com os EUA ou países da Europa em relação a educação no trânsito, cada País tem o processo que enquadra melhor a sua realidade, o Brasil precisa sim de educação no trânsito.