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03 de outubro de 2024

Artigo – Causa justa


Por Artigo Publicado 02/02/2022 às 21h05 Atualizado 08/11/2022 às 21h15
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No artigo desta semana, J. Pedro Corrêa trata do caso singular em Goiás onde a Justiça do Trabalho manteve a demissão por justa causa de um caminhoneiro, motivada por excesso de velocidade.

J. Pedro Corrêa*

No meio da semana fui surpreendido por uma notícia que pode mexer muito com a segurança no trânsito. Pode, mas não sei se vai. Veja aí: “A Segunda Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRT-GO) manteve a demissão por justa causa de um caminhoneiro, motivada por excesso de velocidade. De acordo com a Justiça, a velocidade excessiva é ato faltoso grave e configura descumprimento dos deveres e obrigações contratuais, podendo ser motivo para esse tipo de demissão.”

A reportagem foi publicada no Blog do Caminhoneiro, aqui do Paraná, e repercutiu muito junto aos motoristas profissionais por ser fato inusitado no Brasil. Me disse o Rafael Brusque, editor do Blog, que foram vários os comentários dos motoristas de caminhão. Eles reclamavam principalmente pelo fato de o profissional ter sido demitido porque ultrapassou em, apenas, 3 km o limite de velocidade.

Minha intenção aqui não é entrar no mérito da causa em si, até porque no primeiro julgamento deste processo, a 1ª Vara do Trabalho de Aparecida de Goiânia, Goiás, deu ganho de causa ao motorista. Possivelmente o processo vai continuar, com recurso para reverter esta segunda decisão.

O que me interessou no assunto foi o fato de a justiça do trabalho ter julgado favorável a decisão da empresa de punir seu funcionário por desrespeitar norma interna sobre limites de velocidade. Isto é emblemático já que até agora não me consta que fato similar tenha acontecido no Brasil. Esta decisão tem tudo para se tornar amplamente conhecida no país. Além disso, outras instâncias judiciais de outros estados podem adotá-la e, assim, se tornar jurisprudência para se tornar comum no país.

O ganho para a causa da segurança no trânsito será extraordinário. E isto pode acontecer não só para condutores de caminhão, mas de quaisquer outros veículos cujos motoristas mantenham vínculo empregatício legal. Todos sabemos que multas por infrações de trânsito cometidas por funcionários, além de serem comuns nas empresas, também são motivos de dor de cabeça. Isso porque além dos procedimentos de pagamentos e dos respectivos descontos dos infratores, fica a questão da imagem suja da companhia perante clientes e a sociedade.

Manter seus motoristas profissionais obedecendo as leis, livres de multas e zelando para não infringir os limites de velocidade, evitará problemas para as empresas, bem como para os próprios condutores. Além disso, trará muitos benefícios ao trânsito rodoviário em geral.

A consequência disto pode ser – oxalá aconteça – uma maior conscientização parte das empresas de melhorar os sistemas de controle operacional de suas frotas. Além disso, aproveitando para aperfeiçor o treinamento de motoristas para evitar a decisão cruel de demitir seus colaboradores. Depois de haver investido na seleção do funcionário, capacitação, treinamento, a última coisa que uma empresa pode desejar, será despedir o colaborador por desrespeitar normas em vigor. Possivelmente o próprio condutor não terá se dado conta de que uma infração comum, como exceder a velocidade com o veículo da companhia, poderá lhe custar o emprego. Neste caso um treinamento bem feito mostrará seu valor, tanto para a empresa quanto para o próprio empregado.

Me lembro bem de uma cena curiosa ocorrida comigo mesmo há muitos anos na Suécia. Eu acompanhava uma equipe de TV brasileira numa ampla reportagem sobre como funcionava o sistema de segurança no trânsito naquele país. O repórter entrevistava o principal executivo do governo sueco nesta área quando surgiu o tema das punições aos infratores.

“Deve se aplicar a lei para todos e não pode haver exceção”, disse o Sr. Claes Tingvall, considerado o tutor do Vision Zero, programa que se tornaria mundialmente reconhecido e copiado em dezenas de países.

“Punição ou educação, qual o melhor caminho?” foi a pergunta a seguir.

Afinal, estávamos na Suécia, um país com um IDH dos mais altos do mundo e seria importante saber como uma nação altamente civilizada trata seus cidadãos quando infringem as leis do trânsito. “São os dois extremos de uma mesma linha”, explicou Tingvall. “Você oferece educação de qualidade mas se a pessoa não respeita as normas, a punição é inevitável. Esta é a regra”, completou. Dois dias depois, já na capital, Estocolmo, documentamos uma blitz de trânsito, perto das 11 horas da manhã e assistimos à uma cena inusitada.

A polícia interpela um senhor com idade superior a 50 anos e confirma estar acima do limite de álcool no sangue. Emite a multa e ele só é liberado quando a outra pessoa que estava com ele no carro, se prontifica para conduzir o veículo. Isso, é claro, depois de provar estar sóbria.

Nos aproximamos do infrator, ele aceita falar para a tv brasileira e a primeira pergunta foi como ele analisou o trabalho da polícia ao multá-lo por embriaguez. “Muito correto o trabalho da polícia”, disse ele. E continuou:

“Eu errei, bebi e, assim, não poderia dirigir; desta forma, a multa foi bem aplicada”, mostrando uma consciência espantosa (para nós brasileiros, claro).

Sabemos que desde Pitágoras (“Eduquem as crianças e não será preciso punir os homens”), existe uma grande discussão sobre o melhor caminho entre punir e educar.

Há ótimos exemplos de quem tem evitado punir e por isto se esmerado na educação e nos treinamentos. Há, porém, uma máxima que resiste ao tempo: “a forma mais efetiva de combater a infração é a certeza da punição”. Esta fórmula se aplica nos países avançados e, até que surja algo que prove ser melhor, pode servir de exemplo às nações menos desenvolvidas.

Assim, aquele motorista que ultrapassou o limite de velocidade em Goiás e foi demitido por justa causa, pode ter dado uma bela contribuição à segurança no trânsito brasileiro. Que este episódio sirva de exemplo a tantos outros motoristas brasileiros para que não se repita. Ao mesmo tempo, que as empresas usem a solução goiana para acertar um modelo de comportamento que ajudará muito o país a encontrar o padrão que tanto procura e que tanto merece.

Como se vê, não se trata apenas da questão do direito, da justa causa mas, principalmente de atender aos anseios da sociedade, na causa justa.

*J. Pedro Corrêa é consultor em programas de segurança no trânsito

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