Brasil: carros autônomos no transporte coletivo são uma tendência viável?
O uso de carros autônomos no transporte coletivo é, realmente, uma tendência que pode ser viável, no Brasil? Veja a resposta de especialista da área.
Um projeto da Glydways, empresa norte-americana, pretende utilizar os carros autônomos para facilitar o transporte público. De acordo com a proposta, os carros funcionarão em um sistema 100% fechado com ruas exclusivas para os veículos autônomos e sem nenhum tipo de barreira que atrapalhasse a circulação, como cercas ou quebra-molas. O uso de carros autônomos no transporte coletivo é, realmente, uma tendência que possa ser viável, sobretudo no Brasil?
Para saber a resposta, o Portal do Trânsito conversou com o professor de engenharia eletrônica da UTFPR Cícero Martelli, que, também é especialista em sensoriamento e instrumentação.
Acompanhe!
Portal do Trânsito – Quais são os prós e contras do uso de carros autônomos no transporte coletivo no Brasil?
Cícero Martelli – O principal problema é a falta de espaço destinado, que já tem a sua própria infraestrutura. Por exemplo, se nós pegarmos Curitiba, uma cidade bastante antiga, em que a região central é toda com prédios e ruas já existentes e o trânsito hoje é muito intenso. Então se você tiver que segregar as vias expressas especiais para carros privados, provavelmente haverá muita reação pública e eu acho que não vai ser eficiente. Ao contrário, será bastante ineficiente na minha leitura.
Portal do Trânsito – Ainda segundo a empresa idealizadora do projeto, existe a necessidade de um sistema único para o transporte, pois essa seria a única maneira de integrar todos os veículos da frota e controlá-los simultaneamente, evitando qualquer tipo de sinistro de trânsito. No caso do Brasil, estaríamos já preparados para esse tipo de tecnologia?
Cícero Martelli – Eu penso que é bastante utópico pensar no Brasil em você ter um sistema único para o transporte. Nós temos, primeiramente legislações municipais, estaduais e federal, rodovias municipais, estaduais e federais também. Frotas bastante diversas em ambientes bastante diversos, e fazer a dimensão disso num país das dimensões do nosso é um esforço muito grande, e não sei se tem apelo popular. Novamente, mantenho a minha opinião da pergunta anterior, eu acho que um sistema único, uma única empresa, não consigo ver isso acontecendo.
Portal do Trânsito – Apesar de o projeto prever o uso de sensores para evitar colisões com animais e humanos, a ideia é que o carro se desloque o tempo todo, não precisando parar em sinaleiros. Isso faria com que o tempo de deslocamento diário pudesse ser reduzido em até um terço. Quais são os riscos dessa tecnologia para a segurança no trânsito, circulação de pedestres e para pessoas descerem nas paradas?
Cícero Martelli – Eu vejo um risco que talvez não esteja na pergunta, que é o fato de você segregar as regiões da cidade diminuindo, inclusive, a circulação das pessoas em outras regiões e aumentando o vandalismo, diminuindo a segurança. Temos dados que mostram que as áreas das cidades morrem, envelhecem, são abandonadas justamente pela incapacidade das pessoas acessá-las. Se você segregar essas vias em projetos como esses, isso vai segregar a cidade e, consequentemente, provavelmente a desigualdade e a disparidade social de segurança vão surgir.
Naturalmente, você também tem que estar um pouco atento sobre a liberdade de ir e vir das pessoas, porque elas vão estar presas àquela forma de circulação das vias onde esse tipo de circulação vai existir.
Portal do Trânsito – A ideia do projeto é que os veículos sejam compartilhados apenas com amigos e familiares. Neste caso, podemos dizer que se trata de um transporte coletivo e não privativo?
Cícero Martelli – Na minha leitura, continua sendo um transporte privado. E eu acho que existem soluções mais adequadas do que essa, para que você estimule a utilização coletiva de veículos privados. Existem exemplos, em especial na América do Norte, onde existem as vias para veículos de alta ocupação, a indústria já tem tecnologia que permite monitoramento e o controle desse tipo de via. Nesse sentido, eu acho que é uma solução muito mais eficiente do que a proposta.
Portal do Trânsito – Pensando na sustentabilidade e na proposta de carbono zero, a Glydways também afirma que os veículos teriam painéis solares no teto e iriam produzir mais energia do que consomem. Que outras propostas poderiam complementar o projeto pensando na mobilidade urbana e sustentável aqui no Brasil?
Cícero Martelli – Uma coisa que chama atenção é que os carros normalmente têm uma área pequena. Dessa forma, a eficiência de produção de energia através do painel solar para dar autonomia a um veículo parece ser bastante desequilibrada. Eu acho que o painel solar vai ter uma função muito mais estética do que de produção de energia.
Se a gente quiser pensar em soluções mais viáveis, talvez do ponto de vista ambiental, eu creio que diminuir emissões através do aumento da eficiência de motores a combustão é um bom caminho. Existem tecnologias com células de hidrogênio, existem tecnologias que utilizam água, hidrólise da água, existem tecnologias de veículos elétricos que a gente fala o tempo todo, então têm muitas soluções alternativas e que não são necessariamente baseadas na propaganda de ter um painel solar.
Portal do Trânsito – Um dos pontos mais importantes, segundo a companhia, é convencer governos e população sobre a segurança do projeto. Isso porque entrar em um veículo sem nenhum motorista humano pode parecer assustador para uma grande parcela da população. Quais são os reais possíveis riscos dos carros autônomos pensando na realidade do trânsito no Brasil?
Cícero Martelli – Eu vejo que o grande risco é a diversidade de ambientes que nós temos quando olhamos para as nossas rodovias, para a geometria das rodovias, para a falta de sinalização em muitos casos. Há grandes variações com relação a níveis de velocidade na circulação dos veículos. Eu não entendo que o Brasil esteja preparado para receber qualquer tecnologia para veículos autônomos. Acho que isso vai demorar um pouco. Além disso, para que aconteça sem dúvida alguma, será necessário um investimento muito grande em infraestrutura das vias, incluindo instrumentos que terão que se comunicar com os veículos e ajudá-los a se parametrizarem durante o movimento. Antes disso eu acho muito arriscado e tenho preocupação com relação ao sucesso dessa implementação.
Portal do Trânsito – Por fim, em sua opinião, carros autônomos no transporte coletivo são uma tendência que pode ser viável?
Cícero Martelli – Eu creio que não. A minha aposta seria em metrô e trem. Ou, ainda, na expansão do transporte público que já existe, com ônibus elétricos ou ônibus que utilizam biodiesel, a exemplo de Curitiba. Uma expansão da malha de veículos que trabalham com aplicativo, melhorias desse tipo de frota eu acho que são soluções muito mais eficientes.