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Governo veta exigência de médicos e psicólogos especialistas para a realização dos exames para obtenção da CNH 


Por Pauline Machado Publicado 30/10/2020 às 11h12 Atualizado 08/11/2022 às 21h40
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Conversamos com exclusividade com a especialista Juliana de Barros Guimarães, sobre o veto e também sobre as possíveis consequências das novas regras de trânsito no Brasil.

No último dia 14, o governo publicou no Diário Oficial a Lei 14071/20 com veto para a exigência da especialidade psicológica e médica na realização dos exames obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).  Tal medida foi classificada pelos psicólogos como um retrocesso na história.

A defesa presidencial para o veto do art. 147 do CTB e do parágrafo único do artigo 268, se deu, conforme especialistas, pelo mesmo não compreender a necessidade da saúde mental e preservação da vida no trânsito.

PsicólogaJuliana de Barros Guimarães é Psicóloga Diretora Científica da ABRAPSIT. Foto: Arquivo Pessoal.

Diante da publicação, conversamos com exclusividade com a Psicóloga e Diretora Científica da ABRAPSIT – Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego, Juliana de Barros Guimarães, sobre o posicionamento da entidade diante do veto do Presidente e os possíveis impactos se a decisão for mantida pelos Deputados.

Acompanhe!

Portal do Trânsito – Qual é a importância de compreender a necessidade da saúde mental e preservação da vida no trânsito?

Juliana de Barros – Se falarmos especificamente em saúde mental, podemos entender que a saúde mental é determinada por uma série de fatores socioeconômicos, biológicos e ambientais. Está diretamente ligada ao modo como uma pessoa reage aos desafios, às dificuldades e às mudanças que encaramos cotidianamente, além de como conseguimos harmonizar nossas emoções e reações, pois vivenciamos em nossa vida, constantemente, alegrias, tristezas, perdas, raivas, frustrações, conquistas, etc.

Neste contexto da sociedade moderna de velocidade frenética, de cobranças cada vez maiores de trabalho, de tempo, de atenção, as exigências sobre as pessoas estão cada vez maiores, o que ocasiona aumento de tensão, violência e estresse e, consequentemente, ocorrem sobrecargas mentais que podem desencadear dificuldades em relação à saúde mental, na maioria das vezes nem perceptíveis no primeiro momento.

A ciência já comprovou que, quando a mente não está bem, nosso corpo sofre, já que o que não resolvemos na mente, acabamos transformando em doenças físicas, e isso é muito mais comum do que as pessoas imaginam.

Neste momento de pandemia mundial, o que mais se tem falado mundo afora é a necessidade de cuidar da saúde mental. Inclusive, até os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc., têm utilizado serviços de atendimento psicológico para lidar com este momento e ficar bem para exercer seu trabalho tão fundamental.

É notório que os acidentes de trânsito constituem um dos principais problemas de saúde pública mundial, sendo responsáveis por grandes índices de mortalidade em nosso país.

Estudos apontam causas relacionadas à variáreis sociais, ambientais, individuais e, claro, comportamentais, onde estima-se que mais de 90% dos acidentes de trânsito são causados por falhas humanas.

É importante ressaltar que os acidentes de trânsito possuem suas consequências com mortes, sequelas físicas e psicológicas. As vítimas, não são apenas os envolvidos diretos nos acidentes, mas, todos os envolvidos: famílias, amigos, comunidades, etc. São o que podemos chamar de vítimas indiretas destas tragédias que trazem muitas “sequelas invisíveis”, pois, sabemos que cada acidente aumenta a probabilidade de danos à saúde mental dos envolvidos, seja direta ou indiretamente, aumentando as chances de desenvolverem vários sintomas como: estresse pós-traumático e suas consequências, ansiedade, depressão, entre outros, e que podem provocar o surgimento de uma psicopatologia.

Em sua publicação Trânsito: um olhar da saúde para o tema, a Organização Pan-americana de Saúde reafirma a importância do cuidado com a saúde como forma de preservação da vida e prevenção de acidentes: “A saúde aporta à abordagem do trânsito os rigores e a riqueza do olhar epidemiológico para qualificação da informação. Ela se soma também aos esforços da segurança pública e da gestão do setor dos transportes com o olhar proativo da promoção da saúde, com sua atenção aos determinantes sociais, e uma capacidade singular de amealhar outras áreas envolvidas, contribuindo com a evolução do conceito de prevenção da morbimortalidade no trânsito para uma visão ampla, de mobilidade sustentável”.

Afinal, acreditamos que mortes são um preço inaceitável a pagar pela mobilidade!

Portal do Trânsito – O que diz a legislação atual sobre a atual perícia psicológica para a obtenção da CNH?

Juliana de Barros – O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/98), estabelece que a avaliação psicológica deve ser realizada em todos os candidatos à primeira habilitação. E também, quando um condutor pretende exercer atividade remunerada ao volante, em qualquer tempo.

O Conselho Nacional de Trânsito em sua resolução 425/12, vigente, que dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o credenciamento das entidades públicas e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro, estabelece critérios relativos a esta avaliação psicológica. A Resolução foi escrita com a participação de representantes da psicologia e, mais especificamente, com o Conselho Federal de Psicologia integrante da Câmara Temática de Saúde e Meio Ambiente na ocasião.

O Conselho Federal de Psicologia publicou em 2019 a Resolução CFP nº 01/2019, que institui normas e procedimentos para a perícia psicológica no contexto do trânsito. Nela são estabelecidos os procedimentos técnicos e habilidades mínimas do candidato à CNH e do condutor de veículos automotores. Estabelecendo nesta norma, também, a definição da avaliação psicológica pericial ou perícia psicológica, como uma avaliação psicológica direcionada a responder demanda legal específica. É um processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que são resultantes da relação do indivíduo com a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estratégias psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos – reconhecidas pela psicologia. No contexto do trânsito, ela deve ser realizada por psicóloga(o) qualificada(o) no assunto.

Neste sentido, é importante frisar que quando se realiza uma perícia psicológica para o trânsito, está sendo avaliado aquele candidato e suas condições, naquele momento, para uma condução veicular segura.

Portal do Trânsito – Que mudanças estão previstas ou sendo sugeridas pelo governo neste quesito da perícia psicológica para a obtenção da CNH?

Juliana de Barros – Para falar sobre as mudanças previstas e sugeridas pelo governo sobre a questão da perícia psicológica precisamos dividir em momentos dentro de toda a tramitação.

Em primeiro, vem a propositura do PL 3267/2019 pelo Governo Federal, em junho de 2019. Este momento foi antecedido por uma fala do presidente, e também na entrega do projeto à Câmara dos Deputados, de que os exames de saúde poderiam ser realizados em qualquer lugar e, inclusive, por profissionais de sua escolha, inclusive parentes. Isso não veio explicitado na redação do PL. Também referiu que todo mundo iria ter CNH de 10 anos “a partir da sanção”, sem contar outros pontos que impactam a segurança no trânsito, mesmo que não diretamente a perícia psicológica para o trânsito.

Em seguida, teve todo o trabalho realizado na Comissão Especial do PL na Câmara, com as diversas audiências que participamos – a Abrapsit e o Conselho Federal de Psicologia, com o material técnico e científico que encaminhamos. Eu, inclusive, representando a psicologia, falei na audiência pública, a convite da Comissão Especial, na defesa da perícia psicológica e da importância das avaliações de saúde como forma de prevenção de acidentes e promoção da saúde. A Comissão produziu um relatório que alterou significativamente o PL original, mesmo que ainda deixando vários pontos que precisariam ser revistos, tivemos um avanço da proposta inicial. Neste relatório inicial proposto, a Perícia Psicológica mantinha-se da mesma forma que é estabelecida atualmente. Acrescendo-se as exigências da especialidade em psicologia do trânsito para a realização destas avaliações e, a inclusão da avaliação psicológica ao chamado infrator contumaz.

Lembrando que a especialidade em psicologia do trânsito já é um requisito constante da Resolução CONTRAN nº425/2012.

Com um destaque apresentado pelo PSL no final da votação plenária virtual, em regime de urgência, as perícias psicológicas realizadas nos condutores que exercem a atividade remunerada passaram de 5 para 10 anos de intervalo. O que representa dizer que a partir de então, os motoristas de ônibus, táxis, aplicativos, caminhões, carretas, motofretistas, entregadores, motociclistas ou de transporte escolar, apenas avaliarão seu estado mental e emocional a cada 10 anos. O que nos faz interrogar, como iremos cuidar dos nefastos efeitos de uma não atenção básica à saúde destes condutores que trafegam constantemente neste ambiente estressor que é o trânsito? Inclusive, transportando diversas pessoas e crianças?

Deste modo, no relatório final aprovado pelo Congresso Nacional, a perícia psicológica deveria ser realizada por especialistas em psicologia do trânsito, para todos os candidatos à primeira habilitação e todos os que exercem atividade remunerada ao volante, a cada 10 anos máximo. As perícias realizadas até a entrada em vigor da Lei não serão alteradas. Os infratores contumazes deverão submeter-se à avaliação psicológica juntamente ao curso de reciclagem para retomarem a condução veicular. Os Detrans e Conselhos Profissionais deverão fiscalizar as avaliações periciais dos profissionais, de forma a garantir a técnica, cientificidade e ética do processo.

Contudo, o veto presidencial retirou a exigência da especialidade psicológica e médica para a realização dos exames profissionais e a avaliação dos condutores infratores contumazes. Neste momento, está em tramitação no Congresso Nacional os referidos vetos para análise da casa.

Portal do Trânsito – O que, na prática, tais mudanças trazem de riscos para o trânsito e pedestres?

Juliana de Barros – Todas as flexibilizações da Lei de Trânsito trazem impactos à vida da população. Se hoje o trânsito no Brasil já é responsável por mais de 40 mil mortes por ano e mais de 600 mil sequelados, sem contar as sequelas invisíveis e as vítimas indiretas, temo imaginar aonde podemos chegar.  Para se ter uma ideia, hoje, a cada uma hora perdemos cinco vidas para o trânsito.

Agora, com as CNHs com validade de 10 anos, sem o devido cuidado com a saúde e o comportamento, os riscos crescem exponencialmente ao adoecimento que acompanhamos na população. O Brasil é o país com o maior número de transtornos de ansiedade no mundo e o quinto em número de pessoas diagnosticadas com depressão. Isso apenas para citar alguns problemas de impacto direto no ato de condução veicular segura.

Então, aumento de validade, diminuição das penalidades ao infrator, aumento de tolerância da pontuação, depreciação da qualificação profissional. Enfim, entre os diversos fatores constantes da proposta do Governo, os riscos são enormes. Do aumento da mortalidade, da desestruturação familiar e social, da ocupação hospitalar, do aumento de gastos, que hoje já representam de 3 a 5% do PIB do país, até as sequelas psicoemocionais de toda uma geração.

Portal do Trânsito – Por fim, quais são os maiores desafios para que, na prática, tais substituições não sejam aprovadas. E assim, termos um trânsito mais seguro e, como consequência, menos violento no Brasil?

Juliana de Barros – Acredito que o nosso maior desafio, hoje, para que esses vetos não sejam aprovados é que possamos contar com os nossos parlamentares. Ao longo de mais de um ano de tramitação, todos deputados, senadores e partidos foram visitados e receberam materiais científicos, dados e pesquisas sobre a relevância do tema. Além disso, tiveram as explanações científicas realizadas em audiências públicas com diversos especialistas e técnicos que atuam em defesa de um trânsito seguro.

O Projeto hoje sancionado e publicado como Lei nº 14.071/2020 foi aprovado em ampla maioria pelos representantes do Congresso Nacional. E sofreu vetos presidenciais que não consideraram a segurança viária e a preservação da vida da população.

Precisamos acionar nossos representantes no Congresso e reforçar a necessidade de um trânsito seguro. Sem esses índices alarmantes de morbimortalidade, sequelas e o consequente ônus ao erário público.

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