08 de novembro de 2025

O que vale mais: a vida ou a tradição etílica?


Por Márcia Pontes Publicado 31/07/2014 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h36
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Beber e dirigir

O Brasil foi surpreendido com a notícia de que na pacata cidade de Pomerode, no Vale do Itajaí, e que até então registrava os menores índices de acidentes e mortes no trânsito em Santa Catarina, as autoridades pressionaram e conseguiram acabar com as blitze noturnas para fiscalizar quem bebe e dirige. O motivo? Muitos frequentadores de Clubes de Caça e Tiro estavam esvaziando os salões de festa regada a cerveja com medo de caírem na fiscalização da Lei Seca.

Isso fez com que alguns presidentes de Clubes de Caça e Tiro da cidade pedissem aos vereadores para que pedissem ao prefeito que proibisse a realização de blitz nos horários de festa porque a lei estava prejudicando a tradição. Qual tradição? A de beber e voltar para casa dirigindo e colocando a si próprio e aos outros em risco em via pública em um país que fabrica, por ano, um exército de mais de 50 mil mortos e cerca de 450 mil sequelados no trânsito?

Não é a primeira vez que a cidade de Pomerode se envolve em polêmicas entre a lei e a tradição. Quem lembra da repercussão nacional da Puxada de Cavalos, em que ativistas da causa animal, a maioria mulheres, foram agredidas com paus, pedras, socos e pontapés por homens que colocavam cavalos para competir puxando toneladas de sacos de areia até a exaustão? Tradição dos antepassados ou maus tratos aos animais conforme os ativistas?

Sabemos que utilizar o celular enquanto dirige é a praga do século, mas acidentes provocados por quem bebe e dirige são manchetes diárias na mídia nacional e tem muito mais visibilidade do que os acidentes provocados por quem dirige mexendo no celular.

E o pior de tudo, para expor à vergonha nacional, é que as blitz noturnas em que eram flagrados os condutores embriagados, muitos que saíam dos Clubes de Caça e Tiro, foram extintas sob a alegação de que as horas extras oneravam a folha de pagamento. O pior de tudo é que tem autoridades na cidade apoiando o fim da fiscalização no trânsito.

Isso é caso de intervenção do Ministério Público! É caso de denúncia aos ativistas humanitários que defendem a causa de um trânsito seguro e seus organismos internacionais, porque não existe causa mais humanitária do que prevenir e evitar mortes e sequelas em um país em que deixa mais vítimas no trânsito do que em guerras.

São os próprios representantes da tradição cultural, da lei e da ordem na cidade que deveriam saber que a tradição germânica não se resume a cerveja, mas também ao idioma, à gastronomia, aos jogos, festas, danças, músicas, corais, esportes e outros legados dos colonizadores. O paladar para cervejas é apenas um aspecto da tradição e não deveria resumir a própria tradição, porque acima das tradições existem leis que devem ser cumpridas, principalmente quando é para proteger a vida.

Num momento em que o Brasil e as cidades de colonização alemã se orgulham tanto da demonstração de elegância, de respeito, de educação e exemplo dos jogadores alemães na passagem pelo nosso país, os descendentes de colonizadores fazem essa patuscada e expõem a si próprios e à todos nós à vergonha de pedir e conseguir licença para beber e dirigir. Afinal, acabaram com a fiscalização após a pressão que fizeram.

Emprestando para este caso as palavras do presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, José Aurélio Ramalho, em referência à questão da acidentalidade no trânsito, abre-se uma indústria para fabricar pregos tortos, e depois se abre outra indústria (a de campanhas educativas) para desentortar esses mesmos pregos.

Se não forem capazes de se sensibilizar pelos riscos e pela ameaça das consequências de beber e dirigir, que os governantes, os homens da lei e da tradição na cidade de Pomerode se sensibilizem pela repercussão negativa e vergonhosa em todo o país ao pedido de proibir a fiscalização de trânsito nas proximidades dos Clubes de Caça e Tiro sob a alegação de que prejudica a tradição.

O que prejudica a tradição é supervalorizar a bebida alcoólica diante de toda a riqueza da tradição germânica, feita muito mais de cultura, dança, música, gastronomia e tantos outros atributos do que de cerveja.

O que prejudica a maior tradição de todas, que é o respeito à vida, em um país que gasta uma baba todo ano em campanhas educativas e preventivas para que mais pessoas não continuem morrendo e se matando no trânsito, é querer transformar em tradição o ato de beber e dirigir ao ponto de se pedir a proibição da fiscalização e do cumprimento da lei.

Não era para acontecer o esvaziamento dos clubes de tradições germânicas em Pomerode ou em qualquer outro lugar ou festa no país se os frequentadores que apreciam tanto a bebida alcoólica voltassem para casa de táxi. Não era para se registrar tantas mortes no trânsito se as pessoas não defendessem tanto a bebida e direção. Se não fossem tão comodistas e desrespeitosas consigo mesmas, com os outros, com as leis e com a vida.

O fato é que ter bom paladar para cervejas e outras bebidas pode até ser cultural, mas o que não pode ser cultural é o hábito de beber e dirigir como se não houvesse consequências. De luto por todas as vítimas de condutores alcoolizados e suas famílias.

Márcia Pontes

Meu nome é Márcia Pontes, sou educadora de trânsito em Blumenau (SC), Graduada em Segurança no Trânsito na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e colunista de assuntos de trânsito do Portal de Notícias Blumenews. Sou pesquisadora do medo de dirigir e dos métodos de ensino da aprendizagem veicular pelo método decomposto, desenvolvido na Suíça e difundido em autoescolas italianas.Em 2010 iniciei nas redes sociais um trabalho de Educação Para o Trânsito Online (EPTon) utilizando a força das mídias sociais (Orkut, Facebook, Blog, MSN, Twitter, Youtube) com foco no acolhimento emocional, aprendizagem significativa e dicas de direção defensiva, ética e cidadania no trânsito.Escrevo o Blog Aprendendo a Dirigir voltado para alunos em processo de habilitação nos CFC e para motoristas habilitados com dificuldades e medo de dirigir. O foco deste trabalho voluntário reconhecido internacionalmente leva acolhimento emocional, aprendizagem significativa e fundamentos de ética, cidadania e humanização do trânsito para evitar acidentes, sobretudo por imperícia.No ano de 2012 publiquei o livro digital Aprendendo a Dirigir: aprendizagem pelo método decomposto para evitar traumas e acidentes durante a (re)aprendizagem da direção veicular. Em 2013 publiquei o livro Aprendendo a Dirigir: um guia prático de exercícios para quem tem medo de dirigir.Sou apaixonada por trânsito, respiro, pesquiso cientificamente e vivo o trânsito com compromisso existencial. A principal luta da minha vida: contribuir para rever e atualizar os métodos de ensino da direção veicular no Brasil substituindo o adestramento do aluno e a memorização pela construção de conceitos e de significados sobre o ato de dirigir defensivamente.

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