Quando se implora pelo óbvio no trânsito
É incrível que em pleno século 21 a gente ainda tenha que gastar milhões em campanhas educativas para pedir, implorar às pessoas que usem cinto de segurança no banco da frente e de trás; para que protejam as crianças nos dispositivos de segurança adequados; para não dirigirem de chinelos; para que não dirijam embriagadas, e por aí vai. Somos os chatinhos do trânsito, os malas sem alça. Vai pedir para uma pessoa não estacionar em vaga preferencial? Prepare-se para ouvir um sonoro “vai cuidar da sua vida”. Sim, como se no trânsito aquilo que cada um faz não afetasse a vida do outro. Sem mentalidade e cultura voltada à prevenção e à segurança, é necessário que uma tragédia anunciada “aconteça” para que as fichas comecem a cair.
Tantas e quantas vezes nós, os que nos importamos com a vida das pessoas no trânsito, já não fomos questionados se não estamos enxugando gelo, chovendo no molhado ou outros bordões afins. Quem é que vai se sensibilizar com uma frase dita com a mesma consciência de um papagaio de pirata que fica o tempo todo repetindo: “se dirigir não beba”? Vira piada e o sujeito ergue um copo, faz um brinde, liga o carro e vai dirigir. Mais adiante a tragédia anunciada se repete.
Muitas vezes me peguei pensando se fazemos campanhas de educação para o trânsito para eles ou para nós mesmos. Não foram poucas as vezes em que participando de seminários, congressos, palestras e outros eventos do tipo me peguei “pregando para os convertidos” ou ouvindo um pregador como eu. Afinal, quem está presente na sala? Os convertidos, os que se preocupam com a própria vida e a vida alheia no trânsito. Afinal, quem tira do próprio bolso o dinheiro da passagem, do hotel, da alimentação, do translado para ir de uma ponta a outra do país só para aprender segurança no trânsito com os outros senão os convertidos? Quantos do povo, da comunidade nós vemos nesses eventos que fazemos para nós mesmos?
É claro que precisamos aprender sempre, interagir, conhecer cases de sucesso que possam nos inspirar e tentar aplicar em nossas bases vivenciais do trânsito em busca de segurança. Mas, somos sempre nós, os envolvidos com a causa do trânsito seguro, os de formação na área, os gestores, os especialistas e os interessados de verdade.
Fico me perguntando quantas vidas os nossos panfletos salvam nas tais blitz que não são blitz chamadas de educativas. Quantos memoriais feitos de toneladas de pedras, erguidos e festejados na sua inauguração para reverenciar a memória das vidas perdidas nas vias e sensibilizar os outros, mas que permanecem lá, invisíveis, despercebidos e sem interesse das pessoas que passam por eles com a mesma frieza de uma pedra?
Qual será o tema da próxima campanha, da próxima blitz educativa, da próxima ação senão um daqueles que eles bem conhecem? Pedestre, atravesse na faixa? Motorista, não fure o sinal vermelho? Não dirija de chinelos? Afivele o capacete no queixo? Não ultrapasse onde não deve? Tudo isso eles já sabem e continuamos chovendo no molhado com a mesma maestria de campanhas de conscientização passadas (é no duplo sentido da palavra mesmo).
Ou encontramos novas estratégias, novas linguagens, mais sensíveis, emocionais e impactantes para tentar sensibilizar as pessoas ou permaneceremos como cães correndo em volta do próprio rabo, essa é a verdade.
Enquanto não cairmos na real de que vivemos em um país que não tem uma plataforma cultural voltada para a segurança no trânsito; em que essa praga do jeitinho brasileiro está em tudo em nossas vidas e, sobretudo, no trânsito; enquanto as pessoas não pararem de se amparar sob o manto da impunidade e continuarem “achando” (e quem acha sempre se perde) que com eles o acidente não vai “acontecer”, continuaremos a contar mortos nas vias públicas tratando cada vida que se vai como só mais uma.
Mas, uma coisa é certa: é hora de rever as estratégias. É hora de buscar uma linguagem emocional que toque as pessoas. É hora de começar a preencher de sentido as ações preventivas que fazemos e tentar encontrar indicadores de resultados para elas.
Sim, haverá doutores e pés de chinelo padecendo e pagando o preço de cometer uma infração “boba” como dirigir de chinelos acreditando que nós, os convertidos, exageramos ao dizer que a tira pode enroscar no pedal e provocar o acidente. Haverá quem nos ouça, quem mude a sua forma de pensar a segurança no trânsito e as suas práticas para torná-las mais seguras só porque nós, os malas sem alça da segurança no trânsito, existimos e insistimos.
Que continuemos em busca da ação e da mensagem perfeita mesmo diante da pergunta que não quer calar: até quando continuaremos implorando para as pessoas fazerem coisas que elas já sabem para se protegerem e nos protegermos uns aos outros no trânsito?