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Trânsito: em que universo paralelo vivemos?


Por Márcia Pontes Publicado 21/11/2013 às 02h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h41
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Racha no trânsito

Francamente, eu não sei em que mundo as pessoas estão vivendo. Penso que tenham talhado uma dicotomia entre o mundo real e o universo paralelo que constroem diariamente no trânsito como válvula de escape, como potencializador da agressividade, como gatilho para os piores crimes contra a vida.

Parece irônico, mas no dia 17 de novembro o mundo parou lembrar das vítimas de acidentes de trânsito e suas famílias e exatamente 3 dias depois a Jéssica, de só 22 anos, foi arrastada por 200 metros quando descia do ônibus e tentava atravessar a rua na faixa de pedestres. Testemunhas afirmaram que o motorista acompanhado de mais 2 ocupantes participavam de um racha e fugiram covardemente deixando uma vida esticada e perdida no chão.

Ora, um corpo para ser arrastado por 200 metros sofre um impacto violento, desumano, e a velocidade do veículo nesse momento tem que ser alta, muito alta para fazer o estrago que fez.

Mas, praticamente todos os crimes de trânsito terminam assim: os bonzões que se acham mais macho e mais motorista que os outros fazem da caixinha de aço que é o carro uma couraça protetora. O ambiente todo muda quando eles entram no carro e passam a ser movidos pela emoção da velocidade, pelo devaneio onírico que lhes dá a sensação de poder e perfeição ao volante quando ainda assim assumem o risco de matar.

Eles saem na noite, é madrugada, ruas vazias, com pouco movimento e alimentam a ilusão de que a rua é só deles, de que não vai passar uma viva alma naquele momento. Mas sempre passa, seja o pai ou a mãe que está indo para casa depois de um dia exaustivo de trabalho, seja o estudante ou qualquer pessoa que esteja exercendo livremente o seu direito de ir e vir.

Só que quando o acidente é provocado os que se sentem poderosos atrás do volante tornam-se covardes e fogem. Dias depois, quando são orientados por um advogado a se apresentar ou porque foram localizados pela polícia, apresentam-se de carinha de bons moços, cabeça baixa, alguns até arrancam algum choro ensaiado. Enquanto se cobre o corpo sem vida no local do acidente, eles cobrem o rosto na entrada ou saída da delegacia.

Cadê o poder que achavam que tinham quando entraram no carro para correr contra a vida e que resultou em mais dor e sofrimento para amigos e familiares da pessoa que eles mataram?

A Jéssica, de 22 anos, não é um número, não é só mais uma pessoa assassinada no trânsito por motoristas imprudentes, negligentes e imperitos. A Jéssica é uma vida humana que foi ceifada numa tragédia anunciada todos os dias num dos países em que as pessoas mais matam no trânsito.

A Jéssica é a filha amada de alguém, ela tinha sonhos, ela tinha planos, ela tinha aquilo que é mais sagrado e que lhe tiraram violenta e covardemente: a vida.

E o pior de tudo é saber que essa sociedade hipócrita vai se comover só por alguns dias e cada um vai seguir suas vidas até não sabe quando (até porque não se sabe quem será a próxima vítima no trânsito) como se nada tivesse acontecido.

A pior coisa que pode acontecer para um ser humano é perder a sua vida, é ter que chorar em cima de um caixão a perda de um ente querido que ele sabe que nunca mais vai ver.

Esse é o momento mais temido por qualquer pessoa, mas, incrivelmente, o ser humano é incapaz de colocar-se no lugar do outro. Ele tem primeiro que perder um amigo, um pai, um filho, a mãe, alguém que ama, para sentir o poder devastador dessa perda.

Num país como o nosso, que mata mais no trânsito do que nas guerras do Oriente Médio, do que o câncer e do que todas as doenças vasculares juntas, as pessoas se recusam a acreditar que possam se tornar vítimas do trânsito.

Cada vez que fico sabendo de uma notícia como essa, em que vidas humanas são arrancadas de nós com tamanha violência que poderia ser evitada, é como se pisassem em cima, escarrassem e sapateassem em cima da dor das vítimas e de suas famílias.

Dor como a do Rafael Baltresca, do movimento Não Foi Acidente, que perdeu a mãe e a irmã pelas mãos de um motorista que poderia ter evitado a morte delas. A dor do Fernando Diniz, da ONG Trânsito Amigo, que perdeu o seu filho Fabrício, à época com 20 anos, numa violência no trânsito que poderia ser evitada. A dor dos amigos e familiares do Vitor Gurman, do movimento Viva Vitão, e a dor de milhares de outras vítimas e da própria sociedade.

O trânsito não é um universo paralelo, ele é extensão do modo como vivemos, interagimos e reagimos em outros aspectos da vida.

Velozes e furiosos é uma obra de ficção que não precisa se tornar realidade assim como via pública é espaço por onde circula a vida e não pode virar pista de corrida porque alguém “acha” que naquele momento não tem ninguém passando na rua.

Cada vez que uma vida se perde de forma violenta, fútil e evitável no trânsito é mais um golpe que sofrem aqueles que abrem suas feridas e suas dores diariamente para que outras vidas não sangrem; que dedicam a própria vida para que outras vidas não sejam perdidas dessa forma.

Notícias como essa da morte da Jéssica tornam a nossa missão mais difícil, mais doída, exige mais resistência, torna a luta ainda mais necessária. Porque em meio a tanta violência e indiferença que banalizam a vida e naturalizam as mortes no trânsito tratando-as como acidentes ou fatalidades aqueles que transformam o luto em luta são o único sinal de esperança para essa sociedade doente.

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