Os mortos não choram
O ser humano tem uma capacidade incrível de se adaptar às mais diversas situações. A morte é uma delas. Foi por volta do 4º semestre do curso de Psicologia, durante uma aula de Neuroanatomia que me dei conta disso.
Envolta em um odor perturbador de formol e rodeada de cadáveres humanos, uma das minhas colegas de curso me questionou se já havia atendido algum acidente com vítima fatal ao descobrir que eu trabalhava como agente de trânsito. Enquanto manuseava uma peça (nome usado no meio acadêmico para para denominar a parte do corpo a qual se está estudando, no caso o cérebro) respondi que sim, alguns. Sua curiosidade parece ter aumentado com a minha resposta. Ela então quis saber qual era a sensação. Respondi que, tirando o sangue, não era muito diferente da situação em que nos encontrávamos. Nada a mais que pedaços de carne inertes e sem vida.
Após alguma crítica do tipo “que horror” ou “você não tem coração?” que não lembro bem, tive que explicar o porquê da minha frieza. O fato é que a gente se acostuma. Assim como a gente se acostuma a abrir o jornal ou ligar a televisão e ver os números de mortes no trânsito e não mais se espantar. A gente simplesmente se acostuma. Na primeira ocorrência rola uma náusea. Na segunda uma certa pena. Lá pela quinta ou sexta você já está comendo um pastel enquanto consulta a placa do veículo com a central… faz parte da sua rotina.
Antes que você, amigo leitor, me taxe de desumano, insensível ou algo parecido, aviso: há coisas com as quais é impossível de se acostumar. Como com as unhas de uma condutora embriagada cravadas no meu braço, que, enquanto aguardava a ambulância, implorava para que não a deixasse e chorando dizia que queria apenas ver a filha mais uma vez. Ou como quando o motociclista, já em choque pela perda de sangue, que tentava levantar-se e era contido por outros três familiares. Mal sabia que nem se quisesse conseguiria levantar pois, além da sua potente motocicleta que fora parar apenas após chocar-se contra um poste a aproximadamente 200 metros da queda, uns 20 metros antes do ensanguentado motociclista estava sua perna direita sobre o asfalto. Nem tão pouco com a jovem que gritava pedindo para ser tirada da ferragens de um carro capotado enquanto os bombeiros não chegam. Com esse tipo de coisas não há como se acostumar…
Então, essa foi minha resposta. Pra ela e pra quem me pergunta até hoje: “Você não tem problemas em atender ocorrências com vítimas fatais?”. Eu digo um grande e sonoro NÃO. Tenho problemas em atender vítimas presas nas ferragens, amputadas, chorando, gritando, agonizando. Tenho problemas de consolar os familiares que chegam depois e percebem que nunca mais vão poder abraçar um filho, que jamais dirá que ama sua esposa novamente ou que não voltará a ouvir aquelas histórias engraçadas que seu pai costumava contar. Com os mortos não tenho problemas, pois os mortos não gritam, não gemem, não sofrem. Ao contrário dos que ficam, os mortos não choram…