09 de novembro de 2025

Uma ordem imaginada


Por Rodrigo Vargas de Souza Publicado 25/03/2020 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h05
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Foto: Divulgação autor.Foto: Divulgação autor.

Ainda hoje, vez ou outra, sou criticado pelo meu pessimismo para com o comportamento humano no trânsito, pessimismo sobre o qual já escrevi em outro artigo. E quanto mais a tecnologia se desenvolve, quanto mais eu estudo sobre a história da humanidade, mais eu me convenço que não fomos “projetados” para dirigir. E para subsidiar tal impressão, acabo de tomar ciência de um novo argumento não apenas histórico, mas biológico e evolutivo.

Recentemente, nas minhas últimas férias, conheci a organizada cidade de Curitiba. Lá, tive o imenso prazer de conhecer pessoalmente meu grande amigo, pelo qual nutro imenso apreço e admiração, Celso Mariano, do Portal do Trânsito, sediado junto às instalações da Tecnodata. Durante essa maravilhosa visita, em meio a uma agradável conversa sobre nossos trabalhos, o Celso me indicou a leitura do livro Sapiens, do doutor em história Yuval Noah Harari, que fala sobre a história da humanidade.

Durante a interessante leitura, me deparei com um capítulo que, inclusive, leva o mesmo nome desse artigo. Nele, Yuval faz uma intrigante constatação histórica que pode ter influência direta no trânsito atual. Para fins de contextualização, imagine que a humanidade tem cerca de 2,5 milhões de anos. Na maior parte desse tempo o ser humano subsistia da caça e da coleta de grãos. Por isso e por diversos outros fatores, as configurações sociais daquela época não permitiam bandos muito maiores que aproximadamente 50 integrantes, os quais cooperavam entre si tanto para manter sua segurança mediante a predadores e outros grupos, quanto para manterem uma ordem social dentro do próprio grupo.

Foi a partir da revolução agrícola, ocorrida há somente meados de 10 mil anos, que tornou-se possível a ampliação desses bandos, dando origem aos primeiros vilarejos, que sucessivamente tornaram-se povoados, cidades, reinos, até virarem imensos impérios. Naquelas comunidades, uma ordem social só foi alcançada, ainda que temporariamente, a partir de estruturas exploratórias e repressivas, nunca de forma voluntária. Por isso, o historiador defende a ideia de que, evolutivamente, o ser humano não teve tempo para se adaptar à cooperação em grandes grupos.

A revolução agrícola, que pode ser entendida como uma revolução tecnológica, modificou o desenho social de tal forma e com tamanha velocidade a ponto de não dar tempo para que o homo sapiens se tornasse uma espécie geneticamente mais cooperativa. Não seria correto inferir que o mesmo pode acontecer em relação ao trânsito? Ou seja, com a atual velocidade do desenvolvimento da tecnologia, antes mesmo que a espécie humana adapte seu comportamento para um trânsito mais cooperativo e harmônico, não teremos mais essa incumbência. A menos que, antes disso, uma outra revolução ocorra. Mas, dessa vez, uma revolução comportamental, o que eu, como bom pessimista, duvido muito.

Rodrigo Vargas de Souza

Sou formado em Psicologia pela Unisinos, atuo desde 2009 como Agente de Fiscalização de Trânsito e Transporte na EPTC, órgão Gestor do trânsito na cidade de Porto Alegre. Desde 2015, lotado na Coordenação de Educação para Mobilidade do mesmo órgão.Procuro nos meus textos colocar em discussão alguns dos processos envolvidos na relação do sujeito com o automóvel, percebendo a importância que o trânsito, espaço-tempo desse encontro, vem se tornando um problema de saúde pública. Tendo como objetivos, além de uma crítica às atuais contribuições (ou falta delas) da Psicologia para com a área do trânsito, a problematização da relação entre homem e máquina, os processos de subjetivação derivados dessa relação e suas consequências para o trânsito.Sendo assim, me parece urgente a pesquisa na área, de forma a se chegar a uma anuência metodológica e ética. Bem como a necessidade de a Psicologia do Trânsito posicionar-se de forma a abrir passagem para novas formas heterogêneas de atuação, que considerem as singularidades ao invés de servirem como mais um mecanismo de serialização das experiências humanas.

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