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24 de outubro de 2024

Drogas e caminhoneiros


Por José Nachreiner Junior Publicado 18/11/2020 às 18h18 Atualizado 02/11/2022 às 19h59
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O colunista José Nachreiner Junior escreve sobre o uso de drogas por caminhoneiros: suas causas e consequências. Leia!

Leia o depoimento de João, 47 anos, caminhoneiro, que se recupera em um centro de reabilitação de drogas na grande São Paulo:

…”Era tarde de domingo e eu já havia percorrido 750 quilômetros. Deixei a área de logística da companhia em Florianópolis com a carga de líquidos inflamáveis. A gente nunca pode esquecer a papelada da empresa e a documentação do motorista.  Dirigindo direto, às vezes, você esquece de um certificado de inspeção para produtos perigosos a granel, o CIPP e lascou-se.

Se você esquece uma documentação da carga tipo ficha de monitoração, pode contar, você fica parado na inspeção até alguém da companhia trazer o documento.  É problema, que nem atrasar o frete: menos dinheiro no bolso a gente não come nem a família.  Ninguém nunca desconfiou de como eu conseguia fazer viagens e mais viagens, uma em seguida da outra sem atrasos, andava sempre na frente do relógio. 

Sempre tinha um “brother”  no restaurante de um posto de combustível oferecendo uma anfetamina. 

É, eu comecei no rebite para aguentar esse tranco de dirigir 16, 18, 20 horas sem parar.  Quando comecei com a cocaína, mais barata que o rebite, aí nem xixi eu tinha vontade de fazer.   Meu irmão, eu tocava a mil, você não sabe o que é enfiar no “naso” um potinho de coca…  Quem dirige não tem essa frescura de parar, enrolar uma nota de “cenhão” e cheirar a carreira.  Tudo é no ato, a gente põe no potinho e cheira total na boleia.  Então, eu deixei Floripa, andei 750 km e capotei.

Foi o pior dia da minha vida.

Eu devia ter morrido no lugar de quem eu matei, uma família inteira.  Agora estou aqui no centro de reabilitação de drogas com minhas preces. A cocaína junto com o rebite fazem você dormir acordado, você acha que está dirigindo certo, mas na verdade o acidente já aconteceu e você nem percebe.  Me lembro de todos os dias na UTI, parecia eu na pista, de repente, escuto uma voz:  – acorda seu João! Acorda!  Você está bem? E acordei depois de 20 dias na UTI, todo quebrado. 

O pior foram os dias de abstinência aqui na clínica. Quero curar o vício com minhas preces e tentar esquecer o dia em que provoquei aquele acidente horrível”…

(João, foi meu vizinho em um bairro da capital de São Paulo, onde morei, soube da sua tragédia e ele, gentilmente, me concedeu a entrevista).

As rodovias brasileiras e as drogas

O Brasil é um país de extensões continentais. Infelizmente, perdemos a corrida pelos transportes de carga, sustentáveis, por hidrovias e, principalmente, ferrovias.  Perdemos a corrida para a cadeia do petróleo, a indústria automotiva, pneumática.

O resultado foi a construção de rodovias e rodovias.  Grande parte da malha rodoviária brasileira foi construída sem o planejamento necessário. Buracos, ausência de planejamento de engenharia e arquitetura, pistas estreitas e de mão dupla e, entre outras mazelas, as drogas consumidas pelos caminhoneiros.

A vida do caminhoneiro é difícil, não só pelas estradas horríveis, sem manutenção, pedágios caros, mas ele precisa dar um jeito de dar conta das entregas, e para isso passa horas ininterruptas no volante.

O encontro com as drogas tem sido um problema constante na vida desses profissionais.

De acordo com a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), a combinação do rebite com a cocaína aumenta em 23 vezes a possibilidade de motoristas sofrerem um ataque cardíaco, o que fatalmente os levariam a acidentes. O rebite é a anfetamina e, na versão mais suave, o remédio para emagrecer, a anfepramona.

Ela age no sistema nervoso central e produz a sensação de saciedade. O rebite, ingerido em excesso, causa câimbras, espasmos musculares, alucinações visuais e auditivas.  Na prática, o rebite na estrada mata.

A cocaína causa euforias intensas e rápidas, quem consome não se alimenta direito e não tem vontade de dormir.  Depois que passa o efeito, o usuário pode sofrer de depressão, tensão e vontade de cheirar mais.  O motorista que cheira cocaína tem sua frequência cardíaca elevada, espasmos musculares e convulsões. Na prática, a cocaína na estrada mata.

Segundo a psiquiatra, Dra. Luisa Polonio,

“as principais interferências do uso dessas substâncias ilícitas são a diminuição da atenção, da velocidade do pensamento, a alteração do nível de consciência e a diminuição dos reflexos. Com essas funções alteradas, o motorista se expõe a um risco elevadíssimo de gerar um acidente de trânsito. O tempo de efeito depende da dose e da forma de liberação dessas substâncias. Como são substancias diversas e geralmente compradas em um mercado paralelo, sem uma fiscalização da vigilância sanitária, não existe um padrão de tempo de ação no organismo”.

Luisa PolonioPsiquiatra Dra. Luisa Polonio. Foto: Arquivo Pessoal.

Questionada sobre o tempo que leva para a pessoa ficar dependente de uma droga como o rebite, Luisa Polonio afirma que: “a causa da dependência é multifatorial, ou seja, uma série de fatores interferem nesse  quadro, tais como:  genética, dependência de outras substancias, sexo, comorbidades clinicas e psiquiátricas. Não existe um tempo que pode gerar a dependência, esse tempo é extremamente relativo, em algumas pessoas quando o efeito se encaixa na sua necessidade psíquica a dependência pode ocorrer de forma rápida, em outras, mesmo usando por muito tempo, a dependência pode não estar claramente estabelecida. Reforço que mesmo sem uma dependência clara, o uso, ainda que esporádico, já pode trazer graves prejuízos”.

A pressa, a irresponsabilidade e a falta de conhecimentos

As drogas matam cerca de meio milhão de pessoas por ano no mundo, segundo a ONU.  Uma das classes que mais utilizam é a dos caminhoneiros. De acordo com o Ministério Público do Trabalho, quase um terço dos caminhoneiros brasileiros dirige sob efeito de drogas como a anfetamina (rebite) e a cocaína.

Para dirigir o dia inteiro sem parar, muitos motoristas fazem o uso da anfetamina, o rebite, e ignoram suas consequências.  Ao longo de uma viagem, a irresponsabilidade é total e o caminhoneiro pode ingerir cerca de 20 comprimidos por dia e cheirar cocaína enquanto dirige.  O risco de acidentes se multiplica, e o motorista drogado por entorpecentes quando não perde a vida está sujeito a sequelas permanentes, além, da grande possibilidade de tirar a vida do próximo.

O psiquiatra Gustavo Sehnem afirma que:

“os efeitos do rebite ou da cocaína são individuais, variando de pessoa para pessoa.  Alguns são mais resistentes aos efeitos, outros menos, como aqueles que têm quadros associados ao humor.  Com o passar do tempo, o caminhoneiro que consome drogas precisa aumentar as doses para ter os efeitos que sentia anteriormente”.

Gustavo SehnemGustavo Sehnem também é psiquiatra. Foto: Arquivo Pessoal.

Ainda segundo o psiquiatra, normalmente, eles apresentam sintomas de paranoia, crise de ansiedade, pânico, auto referência, perseguição.  “Ao longo do tempo, o motorista, desenvolve sintomas de depressão, cansaço, irritabilidade, impaciência, alterações do apetite e desregulação completa do sono.  Na estrada, os motoristas já alteram suas rotinas de sono e de alimentação, o que piora com a ingestão de rebites e cocaína.  Hoje aumentou a procura por centros de reabilitação por parte dos motoristas dependentes, principalmente aqueles que são apanhados pelos exames toxicológicos, que detectam vestígios da droga até seis meses depois de cessar o consumo”.

Para Sehnem, é necessário a conscientização dos dependentes, por parte de amigos, conhecidos e parentes, que conhecem seus hábitos, para tentar convencê-los a fazer o tratamento.

“Muitos deles nos procuram, com medo de perder a carteira de habilitação profissional, para fazer o tratamento da dependência química.  O correto seria haver maior frequência entre os exames toxicológicos, para uma maior prevenção de acidentes nas estradas por parte dos motoristas de caminhão”, afirma.

Somente um esforço conjunto da sociedade pode mitigar as mortes de trânsito causadas pelo consumo de drogas por parte de quem corre atrás do próximo frete de cargas perecíveis, cargas perigosas, cargas que precisam ser entregues com urgência.

Empresas, estados e federação precisam enfrentar o tema não apenas com modificação ou manutenção das leis de trânsito.

É necessário um trabalho de conscientização (companhias de transporte, logística, empresas de seguros, governos, sociedade) para tentar diminuir os acidentes causados por aqueles que veem na droga a única maneira de entregar uma carga sem parar de dirigir.

O que diz a lei

A Lei 14.071/20, que altera o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e define novas regras de trânsito no país, entram em vigência em 2021.  Fica mantida a obrigatoriedade dos exames toxicológicos de larga janela de detecção para motoristas das categorias C, D e E.  Além disso, o condutor com idade inferior a 70 anos, deverá realizar um novo exame com periodicidade de dois anos e seis meses, sucessivamente, independente da validade da CNH.

Também haverá uma infração específica para o condutor que deixar de realizar o exame toxicológico em até trinta dias após o vencimento do prazo estabelecido.  A infração será gravíssima, com multa agravada em cinco vezes e suspensão do direito de dirigir por três meses, condicionado o levantamento da suspensão ao resultado negativo em novo exame.

Leia mais sobre o assunto:

Senador propõe avaliação médica e psicológica para condutor reincidente em infração por dirigir embriagado 

Exame Toxicológico: em quatro anos, 170 mil motoristas foram pegos dirigindo sob efeito de drogas no Brasil 

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