O preço da impunidade
No trânsito brasileiro, produzimos um exército de feridos (mais de 500 mil, segundo o DPVAT-2015) e de mortos (mais de 40 mil, DPVAT-2015) todos os anos. Era de se esperar encontrar um grande número de condenados por crimes de trânsito. Só que não: a ONG Não Foi Acidente informa que apenas 17 criminosos do trânsito estão, no momento, presos por seus delitos. A imensa maioria das penalizações por crimes de trânsito não passam de pagamentos de fianças, cestas básicas e prestação de serviços comunitários.
Sempre penso no futebol, que não é nem de longe minha especialidade, quando vejo estes números. Imagine o juiz decidir dar um conselho como punição para o zagueiro que aplicou um carrinho que atinge mais o centroavante do time adversário do que a bola, e que, ao invés de expulsá-lo, apenas diga: Meu filho, não faça mais isso, é feio! É de ficar indignado, né? Ou não: o torcedor do time deste zagueiro truculento fica bem menos incomodado do que o torcedor do time prejudicado. Eis um belo exemplo de nossa “ética flexível”.
E se esse árbitro não enxergar o carrinho, a cotovelada, a posição de impedimento? Bem, é para isso que existe a equipe de auxiliares de arbitragem, as câmeras, o replay, o chip na bola e vários outros recursos (nem todos em uso, apesar de serem tecnologias confiáveis). Se nada disso funcionar… daí tudo bem. Não dá nada. Só o protesto da torcida e do time prejudicado. Sem o flagrante, há infração, mas não haverá punição. No caso do futebol, até toleramos – não sei se devíamos. Mas… e no trânsito?
No caso do trânsito, as não-punições, as demoras e os abrandamentos das penalizações ganham proporções graves, que ainda vão nos custar muito caro: já gastamos algo próximo de R$ 40 bi por ano, segundo o IPEA (2004 e 2006), com acidentes de trânsito e a tendência é piorar. E olha que já utilizamos uma boa “equipe de auxiliares” para ajudar na fiscalização do trânsito: agentes de trânsito, lombadas eletrônicas, radares, etc. Mas, ao contrário do futebol, onde tudo se resolve na hora (com raríssimas exceções), no trânsito tem sempre uma fase final do processo de punição. E é nesta fase que encontramos enormes falhas na punição. No Paraná, por exemplo, o Tribunal de Justiça informa que os crimes demoram em média 5 anos para serem julgados. É como se o cartão vermelho pro jogador violento saísse depois do final do jogo. Ou pior, depois do fim do campeonato.
Pensar no futebol, ou qualquer outro esporte coletivo, ajuda a entender o trânsito. Sabe aquela indignação da torcida do time prejudicado? Pois ela é enorme, no caso das impunidades no trânsito. E crescente. Mas não tem sido suficiente para mudar essa história. Participar do trânsito é compulsório: todos participamos. Não há vida social sem trânsito. É portanto, um “jogo” do qual participamos, mesmo quando não sabemos exatamente qual é a regra, quem manda ou qual é o nosso papel. Penso que é melhor entender do que se trata, já que estamos “em campo” e a bola está rolando.
E nosso papel como torcida, hein? Estamos torcendo por quem afinal de contas? Somos bem capazes de protestar quando nosso time é prejudicado e, minutos depois, pelo mesmo motivo, calarmos, caso o erro de arbitragem beneficie nosso time. Ou seja: não queremos a impunidade. Mas se ela nos beneficiar, aí pode ser. Por essas e outras, resolver os problemas de mobilidade não é para amadores.
Em todas as sociedades, ao longo de toda história da humanidade, a impunidade acaba sempre funcionando como um estímulo para que as infrações, desrespeito às leis, abusos e crimes continuem acontecendo. Eis o preço da impunidade. Dá prá ver isso nos jogos de futebol em que o juiz demonstra excesso de indulgência logo no início: até os jogadores mais comportados tendem a passar do ponto. É bom começarmos a torcer pela segurança no trânsito nosso de cada dia. Mas só há jogo bom com o conhecimento e respeito às regras, a boa e justa arbitragem e, finalmente, com o fair play.
Falei sobre os efeitos danosos da impunidade – e mais outros aspectos do comportamento no trânsito – em duas reportagens da RPCTV/Globo deste mês “amarelo”, no PRTV 2ª Edição: